What should a body be in the era of plastic surgery?
Description of a performance

Abstract

This is a testimonial article in which an artistic trajectory is described through an academic support. "How to construct a self-performance from the issue of gender, my body and some revolt." This has become the title of a dissertation whose final aim is practice. Verifying this change of direction provided by the academic support also resulted in a change of the artistic work's title, from The Second Sex to To Simone of the Vision of Beauty.

This is a testimonial of how an academic trajectory acquired, in practice, the mute discourse of the body (female) devised by the political thought of renowned women in the twentieth century.

The political flags, put in words before, were silenced, and a mutant body was strengthened more and more, leaving behind a cumbersome question: where between woman and man is our contemporary body established?

Introdução

Desde o início dos estudos de mestrado debruço-me sobre a idéia de encontrar expressão na história pessoal, ou seja, como uma síntese individualizada é representativa de seu tempo, seu lugar, seu grupo. A célebre frase “O homem é um singular universal”, de Sartre, torna-se uma matéria-prima para a pesquisa. Escrevi um pré-projeto de mestrado no qual as questões teóricas tratadas também seriam investigadas cenicamente; propus, portanto, a criação de uma performance.

A 1ª versão chamou-se El Segundo Sexo (criada durante o ano de 2003) onde exemplifico -- através de histórias pessoais -- questões como a exigência social de que a mulher aos 30 anos seja uma heroína do tipo “mulher-maravilha”, que questões como carreira, maternidade, e sexualidade estejam plenamente equilibradas e bem administradas já que a prova de sua feminilidade depende disso, bem como critico o novo paradigma de beleza brasileira mais recente: os peitos de silicone.

A certa altura dos estudos acadêmicos (mais precisamente por ocasião do primeiro colóquio de que iria participar na Universidade) surgiu a dúvida: o trabalho falaria sobre o feminino ou o feminismo? Optei pelo segundo. Percebi que fazer uso do termo feminismo significaria permitir que a performance refletisse gênero como também uma questão política atual e de um ponto bem subjetivo; trabalhar essa questão também seria tratar da Revolta, na acepção de Albert Camus, que mais explico. Percebi ao longo da pesquisa que para compreender o tema Gênero é necessário, antes de mais nada, confrontarmos nossos conceitos de identidade e origem para que possamos pensar Gênero dentro da enorme diversidade que este substantivo implica e que, definitivamente, não está apenas circunscrito na questão das minorias sociais. Hall constata que o movimento feminista da década de 60, que começou como um movimento dirigido à contestação da posição social das mulheres, expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero.

No início da criação da performance eu deixava bem claro minha dor e minha crítica quanto a ditadura dos silicones no Brasil que, de uma hora para outra, “varreu” da cena o tipo brasileiro. Depois de um certo tempo, após muita observação, me perguntei: não estaria nas operações plásticas -- se retirássemos daí a lógica da moda, do consumo fetichista para consumo masculino -- um ato de assumir a bandeira do movimento de 1970 “nosso corpo nos pertence”?

Revolta e Criação

O natural é inexorável?

Quem realmente exerce poder sobre nosso corpo? Nosso corpo é privado ou é público?

A origem da revolta, segundo Camus, aponta para um principio de atividade superabundante e de energias...

Aqui o orçamento de uma operação de silicone como potência e revolta para a criação.

A partir de um desejo, o corpo deve ser modificado para se encaixar nos novos padrões de beleza. Agradar o outro passa a ser condição para agradar a si mesmo. O orçamento indica que foi pensado e desejado fazer tal modificação plástica. A operação não foi realizada e no lugar se deu a criação de um solo.

Ruptura com a filiação:
a imagem da mãe e o nome do pai

O solo tentará contar uma experiência: a de quem pensou em se submeter a uma cirurgia plástica e ter seu corpo modificado, mas não o fez. A partir deste ponto resolve dar depoimento.

A que nação pertencemos? As fronteiras são marcas físicas ou imaginárias nos continentes? Nossa identidade, a que país pertence, ou a que continente? De que fala um documento?

Fala de nossa identidade pessoal, apresenta a família a qual pertencemos, depois mostra uma identidade nacional e continental. Mas será que realmente nos representa? Pertencemos a todas essas identidades?

Na sociedade patriarcal de origem portuguesa os nomes são muitos; assim se evidenciava a nobreza. Primeiro vem o nome de solteira da mãe, depois o do pai, que é o mais importante e o único que prova ser um filho legítimo; este nome deve ser o último. Em outras sociedades, só importa mesmo o nome do pai. Pelos costumes de nossos ancestrais, uma mulher troca de nome no casamento, passa a ter o nome de seu cônjuge, para que assim toda a família fique unida. Hoje quase todo o mundo ocidental está revendo essa obrigatoriedade.

Deleuze em uma palestra feita em 1997 afirmou: “A criação é algo bastante solitário, mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer.”*

Este corpo é feminino ou masculino? A identidade de quem o carrega é feminina, porém sua forma e como se apresenta aqui é masculina. Seu nome é o único que prova ser um ser feminino, mas a foto não tem legenda e nem tampouco fala, se comunica pela imagem e a imagem é tida como masculina.

A forma começa mudar e o corpo, por baixo da suposta identidade masculina, aparece.

Os seios aparecem, é o suficiente? Talvez, ainda não. Vivemos a era do body modification e o corpo antes modificado apenas por tatuagem e piercing agora o é por operações. Um homem pode virar uma mulher, basta colocar seios e retirar seu órgão sexual original.

Mas seu corpo modificado, a que lugar pertence?

E, então, que se afirma:

... trata-se de uma mulher. Feminino não é a forma, é a marca desta forma, são suas identidades, são suas identificações.

Portanto, depois de sobreviver à idéia de ter um corpo modificado e submetido ao status-quo judaico-cristão e psicanalítico, e, tentando ser soberana deste corpo, assume-se com o natural dele, ainda que o natural não seja inexorável na era tecnológica.

A “impureza” cultural

Durante o encontro do Grupo de Trabalho “Política de Gênero Transnacional/local em performance” no 5º Encontro do Instituto Hemisférico de Performance e Política, ocorrido em Belo Horizonte em março de 2005, deu-se início a um novo processo que muito influenciou para a construção da nova fase da performance. Estimulada pelas nossas discussões e pelo grupo inteiramente multicultural (um grupo formado por estadunidenses, indígenas, chicana, britânica e brasileira) comecei a re-escrever meu trabalho prático. “É impossível tomar um objeto para estudo, sem partir da própria origem cultural do observador”, afirma Richard Schechner[1] . Nós, participantes do grupo, enfrentávamos um embate entre nossa primeira identidade e as múltiplas identidades a nossa volta. A partir de tal constatação é que pude ir revendo minhas posições durante meu processo de construção de um trabalho artístico. Transcrevo abaixo as frases que considero as mais significativas da discussão do Grupo de Trabalho.

1. O que tem a ver gênero com a humanidade?

2. Quando gênero é invisível?

3. Quais as fissuras ou limites de gênero?

4. Como você apresenta a feminilidade e a masculinidade?

Arrisco dizer aqui que somos americanos. E pela primeira vez emprego este termo acreditando realmente no sentido que tem, pois durante o Encontro pude perceber que a maioria ali presente era de raíz latina e/ou nativo-americana. Assim como nós, os norte-americanos também têm uma mesma ascendência étnica miscigenada. No entanto, como coloca o antropólogo inglês Peter Fry, há uma grande diferença entre o colonialismo dos portugueses e o britânico; um foi de assimilação enquanto o outro de segregação[2] , por conseguinte, há uma enorme diferença nas miscigenações dos dois países, mas não me caberá aqui entrar no mérito. Stuart Hall compreende o continente americano como um local onde se cruzam várias rotas, dos quatro cantos do globo desde a Europa, Ásia e África. Ele acredita que daí venham as raízes de cada povo. (Hall; 2003, 31)

Para ele, as culturas têm seus locais, mas já não é mais tão fácil apontar de onde elas se originaram. Dito isso, me vi diante de duas dificuldades: a de definir uma unidade nacional e, conseqüentemente, definir a local. E, a partir de tal constatação e, tendo vivido a experiência em Belo Horizonte, é que percebi que teria dificuldades em manter por muito tempo à idéia de uma política identitária de reivindicação tão presente na performance El Segundo Sexo; tornava-se necessário constatar a hibridização ou “impureza” cultural da qual fazemos parte.

A performance e o suporte acadêmico

Mulher enforcada", performance À Simone da Bela Visão
Foto: Raquel Dias

A performance El Segundo Sexo continha uma profunda vontade de ser compreendida, de mostrar indignação e de refletir questões do momento. A diferença entre essa forma de trabalhar a performance e a de trabalhá-la com suporte acadêmico é a mesma entre a linguagem falada e a escrita. Enquanto a primeira é prolixa, a segunda consegue resumir uma idéia com poucas palavras. Essa é a diferença básica, visível no trabalho prático que, de tantas recortes e resumos de idéias, passou a se chamar À (para) Simone da bela visão. Nesta versão o corpo é o centro da discussão, ele está a frente do discurso, não há aqui mais nenhuma certeza ideológica. Há um corpo que procura se relacionar com o tempo, com o espaço e com as inúmeras sensações que lhe atravessam no momento, sejam sensações produzidas pelo movimento, sejam produzidas pelo olhar do espectador. Em dado momento, ele também se relaciona com o histórico; são construídos alguns ícones: uma mulher de rosto coberto, sem identidade e depois a coloca numa forca, uma menção às histórias de opressão que marcam a ascendência de todos nós.

Na primeira fase, diríamos germinal – antes da Academia - a performance mantinha um tom e uma estética de obra confessional. O universo pessoal era onipresente com textos referentes à situações vividas apenas por mim, ainda que representando o universo feminino das mulheres da minha geração. Já a segunda fase do trabalho, apesar de manter o mesmo eixo temático, consegue ser mais ficcional, a partir de idéias que o corpo expressa, e não mais tão sustentado pelas palavras, possibilitando, portanto, que o espectador faça suas próprias associações e, assim, o trabalho sai do “puramente” privado para o “conjuntamente” público.

Se a Universidade é um local de experimentações, de laboratórios, para as áreas científicas, com destino e objetivo de prestar serviço à comunidade, em última instância por quê então, não seria isso para as artes? A idéia com este trabalho é justamente o de fazer da nossa prática não apenas um estudo científico/artístico, mas uma prática que tenha a tarefa de tornar público o que aparentemente é privado.

Os assuntos tratados tinham uma estética na qual o humor e o discurso verbal se tornavam eloqüentes, e, com isto, direcionavam o trabalho para um discurso quase que único, que continha mensagem, ainda que a intenção fosse a de demonstrar que -- salvo raríssimas exceções -- os assuntos individuais são coletivos, porém a forma escolhida para demonstrar isso não estava indo ao encontro de tal idéia.

À ( para ) Simone da Bela visão foi inteiramente construída com base nos estudos teóricos do curso de mestrado. Em primeiro lugar, a primeira idéia que se desmorona é a idéia simplista a respeito dos Estados Unidos, uma vez que é neste país que se encontram os maiores avanços de movimentos sociais, em particular, o movimento das vanguardas artísticas dos anos 60 e o movimento feminista, assuntos que se tornaram caros a esta pesquisa, pois nos permitiu um recorte sobre nossa ampla idéia de política. Se o alcance político do trabalho intelectual é limitado, imagina-se, então, um trabalho que se pretende ter um alcance político sem nenhum suporte intelectual?

El Segundo Sexo continha duas referências: Simone de Beauvoir e o espanhol, a língua da maioria no continente latino-americano. Um ano de estudos fez com que a linguagem da primeira versão do trabalho, cheia de falas, humor e indignação, cedesse lugar a mais aprofundamento; saíram as falas, o humor e comecei a me preocupar mais com o desvelar do processo artístico, isto é, em procurar compreender em que momento o artista deixa de ser um indivíduo e começa a se entrelaçar com as identidades coletivas de seu entorno.

O nu e o tempo

O Nu e o tempo são elementos presentes nesta nova fase da performance. As fotos acima tinham sido criadas para ser os resíduos do trabalho. A importância das fotografias no trabalho era, ao final, expor o material queinspirou Revolta presentes na performance. No entanto fui, aos poucos, colocando-as na cena e, por fim, o que era um resíduo tornou-se parte da cena. O objetivo é mostrar os efeitos da ditadura da moda em nosso corpo assim como é visto hoje como, por exemplo, a moda dos silicones, já citada anteriormente, definitivamentemudou o paradigma de beleza no país. Apresento um corpo que quase se submeteu a uma interferência cirúrgica para se tornar padrão da nova estética, e hoje estou interessada em mostrar como esse mesmo corpo se modifica a partir de substâncias naturais provocadas pela fisicalidade, pelamovimentação ( que é sempre um improviso) durante a apresentação, e pela carga emocional do momento tais como ansiedade e nervosismo.

Com isto, o manifesto, que era representado pela fotografia, passou a ser apresentado pelo corpo ao vivo. O tempo sim, este ainda tem um objeto para representá-lo em cena, o timer, e marca para mim um limite para o momento da improvisação. Em primeiro lugar, este instrumento cumpre a função do diretor -- talvez de um diretor lacaniano -- daquele que diz : “Tempo! Fiquemos por aqui. Isso já está suficiente”. Ou seja, para que eu não me perca na imensa liberdade de um ensaio solitário, eu o obedeço.

Conclusão

O interessante no trabalho da performance está no ato de desvelar. Comecei com uma revolta e atirava para todas as frentes a fim de dar forma a ela. Em primeiro lugar, porque acreditava assim encontrar as identidades continental e geracional. A tentativa de encontrar a primeira tornou-se impossível tal o grau -- como é bem descrito por Hall -- de deslocamentos geográficos e culturais em nosso continente: dizer o que é autenticamente brasileiro seria possível? A segunda identidade mostrou-se mais forte; trata-se de uma angustiante procura de encontrar no estudo de gênero respostas para tantas mudanças que observamos na formação das identidades sexuais no mundo ocidental de hoje que já não estão mais restritas a estudos especiais sobre a minoria. Constatei isso quando, no Encontro de Belo Horizonte, me vi diante das perguntas sobre visibilidade ou invisibilidade de gênero; sobre as fissuras e também limites de tratar a questão de gênero; quando e como se dá a representação da feminilidade ou masculinidade, ou seja, a questão não é mais desejo de uma inserção social, e, sim, para aonde caminharemos após essa conquista.

Assim como meu discurso mudara, necessitava de uma linguagem que também fosse passível de modificação e, diferente da linguagem cênica de espetáculo, a linguagem de performance me daria a liberdade procurada. Quando saíram as marcas e convenções da primeira versão e fiquei só em um palco nu, pude colocar meu corpo mais atento às emoções momentâneas da cena e resolvi denominar como “substância” tudo aquilo que está dentro de mim provocando tensão e/ou prazer.

As imagens de representação feminina que começaram a aparecer na versão silenciosa do trabalho são ícones universais, e não regionais. É a mulher sem identidade própria que cobre o rosto, a mulher sem voz das culturas sob forte dominação religiosa mesmo quando o mundo já conhecera as sufragistas do século XVIII. A minha imagem durante o trabalho ora é andrógena -- quando estou vestida -- e ora é feminina quando assumo para a platéia os seios que não passaram por uma inclusão de prótese ou quando meu corpo aparece como uma louca, a Maria Louca.

Concluo, finalmente, dizendo que para fazer do próprio corpo um meio de reflexão foi necessário entrelaçar questões sobre as várias representações de gênero que já carregamos naturalmente com a vontade de ir além das mesmas. Foi na linguagem da performance que encontrei essa possibilidade, foi observando outras situações de performance não cênicas, tais como partida de futebol e luta de boxe, por exemplo, que pude entender o jogo cênico que faltava em mim na primeira fase e que aos poucos trazia para a nova versão. Como funcionar sob forte pressão emocional e fazer uso das possibilidades físicas para alcançar o objetivo final, no meu caso, comunicar-me com o público?

Com relação ao movimento feminista, creio que minha contribuição será tratar o corpo como um suporte para uma questão que ainda é, de certa maneira, pouco investigada, a sexualidade.


Helena Vieira :Atriz-bailarina e mestranda de teatro da UNIRIO.


Notes:

 [1] In “O que é performance? “In: revista O percevejo, ano 11, n.º 12, 2003. p.30.

 [2] Cito a partir da entrevista ao suplemento Prosa e verso, jornal o Globo.


Referências bibliográficas:

Camus, Albert. O Homem Revoltado. Record.Rio de Janeiro/ São Paulo. 1999.

Cohen, Renato. Work in progress na cena contemporânea. Perspectiva. São Paulo. 1998.

Costantino, Roselyn e Taylor, Diana. Holy Terrors: Latin American women perform.Durham: Duke University Press, 2003.

Deleuze, Gilles. Palestra. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo, 27/06/1999

Hall, Stuart. Da Diáspora, Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovik Editora UFMG, Belo Horizonte, 2003.

Stoklos, Denise. Teatro Essencial. Denise Stoklos Produções, 1993. São Paulo

Toscano, Moema e Goldenberg, Mirian. A Revolução das mulheres/ Um balanço do Feminismo no Brasil. Rio de Janeiro. Revan. 1992.


Creditos das fotos

Revolta e Criação, Henrique Pereira