A identidade do Amazonas expressa no folclore do Boi-Bumbá
Erick Bessa Pinheiro |UFRJ/NEPAA/UNIRIO
Com a pesquisa desenvolvida através de imagens fotográficas e entrevistas relativas ao XXXIX Festival Folclórico de Parintins (FFP) e seus bastidores no ano de 2004, e refletindo sobre a participação do V Encontro de Performance e Políticas nas Américas com a temática “Performance e Raízes: práticas indígenas e mobilizações comunitárias”, decidi enfocar neste trabalho a força mobilizadora empregada pelo povo parintinense em torno da mais disputada festa junina brasileira que apresenta o “Boi-Bumbá de Arena”, demarcando a identidade do Amazonas na saga deste folclore através do tempo, e a contribuição para o resgate e preservação da cultura indígena dentro do FFP.
Como o V Encontro foi um espaço interativo de idéias e colaborativo de trabalhos à respeito de performance, pude perceber a ligação e a importância desta temática que envolve práticas de danças[1], coreografias, encenações dramáticas que lidam tanto com o sagrado como com o profano, música – que no caso são conhecidas como “toadas”[2] - e artes plásticas, que me levam a definir esta manifestação anual como a história criativa de um povo estabelecida ao registro do conceito de patrimônio cultural imaterial[3].
O Boi-Bumbá foi trazido pelos imigrantes nordestinos no final do século XIX e início do século XX, durante o ciclo da borracha no Amazonas. O Auto-do-Boi[4] amazônico detém características singulares que o diferem das demais expressões deste folclore em outras cidades brasileiras, por ser organizado como um espetáculo de arena que o denomina de “Boi de Arena”, através de uma intensa disputa artística, cênica e musical frente aos temas escolhidos por cada agremiação para a apresentação dos grandiosos espetáculos. O escritor parintinense Tonzinho Saunier descreve em “Parintins - Memória dos Acontecimentos Históricos” que o Boi-Bumbá Caprichoso foi trazido de Manaus por Emídio Vieira, Luís Gonzaga, Emílio Silva e os irmãos Cid, e que em 1920, surgiu o Boi-Bumbá Garantido, criado pelo poeta popular Lindolfo Monteverde. Já Basílio Tenório[5] afirma que a criação ocorrera em 24 de junho de 1913 na primeira apresentação oficial do Boi-Bumbá Garantido pelas ruas de Parintins. Quem foi fundado primeiro, ainda é o mistério de uma história que rende discussão até os dias de hoje. A certeza é que desde que ambos os bois nasceram, nos tempos que a celebração regional acontecia pelas ruas da cidade de forma simples e arcaica com bois-de-pano medieval trazido pelos imigrantes (sem os recursos monetários e aparatos técnicos atuais), os dois bois-bumbás sempre se desafiaram como eternos rivais, sendo que nenhum deles vive sem a existência do “contrário”[6].
Neste passado distante, segundo Odinéia Andrade[7], os Bois-Bumbás após serem os bois de ruas, se tornaram consecutivamente boi de terreiro e de quintal, e em seguida boi de casas - fazendo o auto do tira língua (vender a língua) e cantando nas casas de quem pagasse pela apresentação ou nas residências de seus antigos mecenas e amigos do Boi[8]. Mas sob a influência de aspectos do carnaval do Rio de Janeiro, a rivalidade ganhou espaço próprio na quadra do JAC (Juventude Atlética Católica), e o tornou no boi de quadra ou de festivais, ganhando o sentido de competição a partir de 1966, com a organização do FFP com regras para a disputa entre os bois-bumbás, como forma de melhor organizar o festejo e a própria história regional da sociedade, e que fez com que maior acontecimento de cultura popular do Amazonas assumisse a tipologia única no cenário das festas populares brasileiras.

As transformações decorrentes na tradição secular deste folguedo popular, fruto das tradicionais festas juninas, foram criadas e reinventadas durante todo o século XX na cultura parintinense, através do intercâmbio com outras festas da cultura popular brasileira, principalmente o carnaval do Rio de Janeiro[9], no qual os artistas e artesãos aprenderam muito e vice-versa[10], e atingiram a enormidade de grande evento cultural artístico público[11].
O FFP ajuda a proporcionar uma identidade nítida à cultura do Amazonas, resguardando no contexto atual de globalização, hibridismo e multiculturalismo, uma dinamicidade e vultuosidade pregadas por características políticas progressistas de desenvolvimento social[12] que se manifestam através do turismo cultural e ecológico, e alimenta entre os seus cultuadores a idéia deste ser um dos grandes espetáculos da terra. O FFP é uma ação contemporânea dinâmica que se volta para o passado fazendo sentido no presente, demonstrando suas especificidades locais e seus pontos de preocupação, se tornando uma memória social na construção da identidade regional do norte do Brasil que ganhou o mundo por toda a sua emoção, energia e a magia folclórica de tornar sonhos em realidades.
A colonização portuguesa em 1669 no território da antiga capitania do Grão-Pará trouxe os padres da Companhia de Jesus para visitar as missões ao longo do rio Amazonas. Os religiosos estabeleceram uma capela na aldeia e a batizaram de São Miguel dos Tupinambarana, primeiro nome oficial do lugarejo, que era povoado pelas tribos Parintintim[13], Mundurucú, Patuarana, Sapopé e algumas outras. A região atravessou vários ciclos econômicos como: o comércio de especiarias, produtos extrativistas e o cultivo da juta, fibra indiana introduzida pelos japoneses na segunda metade do século XX que se tornou pauta de exportação do Estado do Amazonas. A vocação para pecuária e para a pesca sempre foram uns dos sustentáculos da economia local, tanto que a gastronomia em Parintins tem nas tradições indígenas e nos pescados como: pirarucu[14], tucunaré, tambaqui, jaraqui e o bodó com tucupi[15] , os principais itens para a mesa. Em 1880, como Vila Bela de Parintins, a comunidade foi elevada para categoria de cidade, sendo hoje um próspero município que tem no turismo cultural a principal atividade econômica.
Slogan do festival

A cidade ribeirinha de Parintins ou ilha Tupinambarana considerada encantada por seus habitantes hospitaleiros e orgulhosos devido ao folclore localiza-se na margem direita do rio Amazonas, a 50 metros do nível do mar, no meio da floresta Amazônica, denominado de Baixo Amazonas, estando 420 Km a leste de Manaus, sendo reconhecida na linguagem indígena como: noçoken, o "Paraíso" pelas belezas naturais, ou a Paris brasileira. A geografia de belos atrativos naturais num ecossistema de várzea e terra firma, se desvenda por um conjunto de ilhas e lagos de diversificada flora e fauna, especialmente as aves, e se complementa com a serra de Parintins, a 150 metros do nível do mar.
A cidade de 97 mil habitantes que se enfeita para promover o festival, chegando a receber 100 mil turistas do Brasil e do mundo, é dividida ao meio

urbanisticamente pela cultura do Boi-Bumbá na rua Clarindo Chaves, a fronteira entre os dois territórios que dá a demonstração clara do confronto. Na parte baixa: do porto a catedral de Nossa Senhora do Carmo (região central da cidade), denominada de Baixa do São José, são os domínios do Boi Garantido, o boi branco do coração, o “encarnado”, vermelho, cor da agremiação e de casas desta localidade. Na parte alta, a partir da catedral, são os domínios do Boi Caprichoso, boi da Tradição, o “diamante negro”, o boi preto da estrela azul, cor da agremiação assim como de muitas residências desta localidade. De um ponto alto como a torre da catedral é possível visualizar os pontos onde se localizam os currais[16]v dos Bois-Bumbás hasteados pelas imensas bandeiras das agremiações. Tudo isso reflete a força motriz deste espetáculo em sua geografia, relações sociais e no conteúdo visual e imaginário deste povo amazonense.

O FFP abrange o universo do caboclo[17] enraizado nas lendas amazônicas, ritos indígenas amparados pela paixão à cultura do Boi-Bumbá, abordando temáticas de compromisso político que se dimensionam na preocupação de preservação cultural da identidade amazonense, a ampla biodiversidade do ecossistema e preservação ecológica da floresta Amazônica como um patrimônio necessário à preservação da própria vida, com discussões sobre a realidade atual do ecossistema e os desafios para o futuro da região, visando alertar contra a devastação empreendida pelo homem à fauna e a flora, devido à exploração predatória com a conseqüente dizimação dos povos mebemgokre[18], assim como as peculiariedades da cidade arquipélago de Parintins.

Para exemplificar na prática a abordagem dos estudiosos dos Bois-bumbás na confecção dos temas a serem apresentados no FFP, segue uma série de fotos da realidade das crianças ribeirinhas do estreito de Breves, objeto temático do Boi Garantido no dia 29, para representar o item Figura Típica Regional e que teve como toada: “Pescadores de doações” de autoria de Rozinaldo Carneiro e Aldson Leão.
Esta grandiosa festa da expressão cultural brasileira apresentada anualmente tem como foco principal a histórica rivalidade entre as duas “nações”, as Agremiações folclóricas de Boi-Bumbás: Garantido e Caprichoso, que disputam o título de campeão do festival junino na arena do Bumbódromo[19] da cidade, reunindo as toadas, dança, teatro, artes plásticas e a paixão enlouquecida e coreografada das "galeras", as típicas torcidas dos bois-bumbás. O resultado é a criação de uma ópera performática, em um espetáculo complexo que manifesta uma constante renovação, devido às criativas inovações dos artistas e artesãos que provoca um permanente impulso de superação através da arte, inspirado nas raízes da tradição cultural indígena amazônica, da cultura do caboclo, afirmada como identidade regional originária desta tradição, mesclado ao conteúdo original do Auto do Boi, de características européias, que encontraram no contexto colonial brasileiro sua especificidade e autenticidade, e se difundiram a partir da imigração vinda do Nordeste, de acordo com as características de cada região em que foi abraçado, mobilizando o desenvolvimento contínuo deste folguedo popular.

A festa acontece durante os dias 28, 29 e 30 de junho. Em cada dia os bois-bumbás apresentam seus itens e encenações dramáticas em atos contínuos que duram mais de duas horas. Os personagens de cada item possuem fantasias com predominância de material reciclado da natureza e artificiais. Os brincantes[20] se apresentam na arena em forma de figuras regionais ou mitológicas do folclore ou dentro das gigantescas alegorias de animais, deuses e cenários construídos em módulos que se encaixam e se
transformam sob efeitos especiais e visuais guardados em segredo até o dia das apresentações. Sempre com a ativa participação das galeras cantando e coreografando danças com materiais: bandeiras, velas, lanternas, fitas, pápeis coloridos, chapéus e etc.. Após os três dias de festival um dos bois sai vencedor por decisão de um júri especializado escolhido pelas próprias agremiações.
Parintins, a capital mundial do boi-bumbá no coração do Amazonas apresenta:
GARANTIDO: Amazônia, coração brasileiro
VS.
CAPRICHOSO: Amazônia, terra do folclore, fonte de vida
Sinopses temáticas dos bois-bumbás
O Boi Caprichoso em sua apresentações, com a temática “Amazônia, terra do folclore, fonte de vida”, se aprofundou ainda mais na defesa da Amazônia, sua gente, flora, fauna e água. Já que repetiu o tema campeão do ano de 2003. Trazendo os grandes eventos da natureza amazônica, celebrando segundo Ciro Cabral, pesquisador da Comissão de Arte “o triunfo de um rio e de um Estado que, do alto de seus milênios, presenciou crespúsculos e alvorecer de nações, de impérios e culturas exóticas, ciclos de vida e morte, no mais complexo santuário...”[21].
O Bumbá Garantido em suas apresentações com a temática “Amazônia, coração brasileiro” mergulhou fundo para revelar a Amazônia como o celeiro dos povos que deram origem às várias etnias brasileiras, colocando o elemento indígena de forma bastante presente no bumbódromo sob as cores vermelhas, e que demonstra que o folclore do boi-bumbá amazônico é ímpar por assumir esta face indígena e cabocla como referenciais da identidade do povo do Amazonas. Enfocou que no folclore do Amazonas todos estes elementos têm os seus devidos espaços na celebração.
Apresentações em três atos: 28, 29 e 30 de junho




No dia 28: o Garantido veio com uma “noite em Parintins”, celebrando um auto do boi genuíno repleto de elementos regionais. Teve como figura típica regional o caboclo ribeirinho. Seguindo com a Lenda do gigante Juma e encerrando a noite com o ritual de confraternização dos povos.
No dia 28: o Caprichoso trouxe “Amazonas, pátria das águas, espelho da vida”, celebrando o tema da campanha da fraternidade daquele ano “água, fonte de vida”. Seguiu com a Lenda amazônica Olhos de fogo e encerrou com o ritual Mariwin.
No dia 29: o Caprichoso iniciou as apresentações e veio com “Parintins: magia, festas e folguedos”, celebrando a história da ilha de Parintins. A figura típica foi os castanheiros da Amazônia. Em seguida apresentou a Lenda do boto e concluindo com o ritual antropofágico dos Tupinambás, uma encenação com 135 pessoas.
No dia 29: o Garantido trouxe “A noite amazônica”, celebrando o caboclo, no item figura típica regional, com as crianças do estreito de Breves (fotos que já foram mostradas anteriormente). Em seguida apresentou a Lenda do Muiraquitã, e fechou com o ritual dos índios Makus, denominado “O mundo Bara-makú”.
No dia 30: o Garantido veio com “Simplesmente, o Brasil”, celebrando a pluralidade regional no folclore brasileiro, trazendo como figura típica regional o romeiro de São José. Em seguida apresentou a Lenda Macunaíma, o curumim do Monte Roraima, fruto do amor proibido entre a lua e o sol, e que se transforma num guerreiro dos índios Macuxi. Fechando seu festival com o ritual Místico Xavante em homenagens às etnias brasileiras como: bororós, kaiapós e tamoios.
No dia 30: O Caprichoso fechou o Festival com “Amazônia, chão brasileiro”, reproduzindo na arena a escultura ”Pietá Tupi”, de Karú Carvalho, inspirada em “Pietá”, do renascentista Michelangelo. Seguindo com a Lenda amazônica “A noite é Parintintin”, e fechou pelo Ritual “Kuarup”, homenagem ao indigenista Orlando Villas-Boas que teve a toada “Kuarup.
O conjunto de itens para julgamento

Os itens a serem avaliados são: Apresentador, Marujada ou Batucada, Levantador de toadas, galera, Amo-do-boi, Sinhazinha da fazenda, Boi-Bumbá, Vaqueirada, Figura Típica Regional, Porta-Estandarte, Lendas Amazônicas, Rainha do Folclore, Tribo feminina, Tribo Masculina, Cunha-Poranga, Tuxaua Originalidade, Pajé, Ritual, Alegorias, Toadas e coreografia e organização.
Apresentador: contador de histórias, um narrador-personagem que informa a apresentação e a história dos itens.

Marujada ou Batucada – bateria dos bois-bumbás que chegam até 600 ritmistas. A do Boi Caprichoso se chama “Marujada de Guerra” e a do Boi Garantido, denomina-se de “Batucada”.
Levantador de toadas: o cantor de toadas do boi-bumbá.
Galera: Torcidas do Bois. A torcida organizada oficial do Garantido chama-se Comando Garantido e a do Caprichoso denomina-se de FAB, Força Azul e Branca.


O amo-do boi : o dono da fazenda , pai de sinhazinha. Repentista de versos para saudar, chamar o boi e a galera. Poeta de improvisos e cantor das toadas de desafios.
Sinhazinha da fazenda: filha do fazendeiro e compõe com o Amo e o Boi um trio inseparável.
O Boi-Bumbá: personagem central da festa. Aparece, evolui e se despede. Podendo aparecer a qualquer momento em qualquer parte do bumbódromo.
Vaqueirada: encarregada de cercar o boi como se fosse a sua proteção na hora das evoluções.
Figura Típica Regional: representa o homem amazônico e vem apresentada em composições alegóricas.

Porta-Estandarte: personagem feminina que traz a flâmula do Boi com o lema anual.
Lendas amazônicas: histórias lendárias do universo amazônico do caboclo e indígena.
Rainha do Folclore: item feminina, representante do folclore parintinense.
Tribos: conjunto de brincantes compostos de homens e mulheres, fantasiados de tribos verdadeiras com adornos e pinturas corporais, realizando coreografias e passos de danças indígenas.

Cunhã-Poranga: Item feminina de destaque. Na língua tupi, significa mulher bonita da aldeia. Apresenta-se possuindo poderes míticos que a aproximam dos deuses.
Tuxaua Originalidade: Estrutura artística carregada por uma pessoa, tipo alegoria-fantasia. Na língua tupi significa chefe indígena, cacique ou quer dizer “cocar”, chamado em Parintins de capacete.
Pajé: curandeiro da tribo que no auto original ressucita o boi. Guia espiritual dos índios que através de danças se comunica com os deuses e adquire poderes para curas e libertações das entidades malignas. Item de destaque dos rituais.
Toada – Composição rítmica da cultura popular do Brasil. Em letra e música, os compositores narram a saga do homem amazônico, lendas, mitos indígenas e os folguedos do Boi-Bumbá. Fazem homenagem aos índios, caboclos, à floresta e artistas populares. Canção singular que contempla a região, tem o ritmo de dois- pra-lá-dois-pra-cá em passos simples e coreografados pelas torcidas dos bois. Muitas são compostas em formas de desafio (valorizando um boi e diminuindo o outro) entre os bumbas rivais.

Alegorias: estruturas artísticas criadas de acordo com um contexto específico na apresentação do boi-bumbá.
Ritual : aborda uma história, geralmente indígena, no final da apresentação de cada dia. Todos os brincantes participam, exceto a figura do boi e a galera do contrário.
Coreografia e Organização: configura a harmonia de apresentação da agremiação durante uma noite de espetáculo.
A dedicação, retorno, desenvolvimento e divulgação com as agremiações folclóricasdos bois-bumbás
O orgulho é o principal sentimento manifestado pela maioria das pessoas que participam, tem vínculo ou torcem com paixão por uma agremiação folclórica de boi-bumbá. Este sentimento se carrega ainda mais quando serve para dizer que é da terra, que é parintinense, parecendo que por trás disso existe uma força natural para esses eleitos. Amor, dedicação, vínculo à serviço de um Boi pelo simples desejo de vê-lo evoluindo para a vitória no Festival. Abraçar uma agremiação significa vestir as suas cores com raça e ter a seriedade de se fazer o melhor e obter tudo que isso possa gerar. O retorno de tudo isso aparece no investimento do potencial artístico do povo parintinense, na promoção e desenvolvimento social da cidade como um todo. Os bois-bumbás representam o interesse de toda uma sociedade.
Para exemplificar melhor estas palavras seguem trechos de entrevistas realizadas com pessoas envolvidas diretamente com as Agremiações Folclóricas desenvolvendo trabalhos e aumentando seus potenciais.
Entrevista realizada no ensaio geral da galera antes do Festival, com as dançarinas parintinenses da “Galera Show” (GS) do Boi Garantido S. Cristina, 15 anos, e A. Sousa, 16 anos.
Vocês fazem parte do quê? E qual o significado disso?
S. Cristina – Do grupo GS de danças. A gente se apresenta pelo boi, a gente faz parte do boi. Porque além da gente dançar, a gente se apresenta lá no bumbódromo, anima, sente a emoção da galera no palco, a galera vibra, vai, retribui e a gente sente aquela emoção.
O “Garantido Show” é uma parte da apresentação no Festival ou ele vai além de Parintins?
A. Sousa – As duas coisas. O GS é composto por vários jovens. Os jovens com o tempo vão definindo passos dançando. Vão participando de apresentações para turistas e para fora também. E esse grupo participa dentro da arena.
Isso significa que uma de vocês fazendo parte do GS amanhã pode ser um “item” do Boi?
S. Cristina – Sim, sempre é assim. Várias pessoas que são os itens, todos eles passaram por aqui e todos estão aí como item saudando nosso boi.
Da maneira que falam, sinto um empenho muito grande. Vocês fazem isso de coração, pela tradição ou por questões monetárias? Ganham alguma coisa com isso.
A, Sousa – Com certeza. A gente faz de coração, vibração, porque a gente gosta, não é por dinheiro e nem pela coisa de ser famosa. É pelo sentimento que a gente gosta de dançar, por nós mesmo. E pela paixão pelo Boi, estamos aqui com orgulho. Nossa terra é festeira mesmo e temos paixão pelo nosso festival. Não só pelo Garantido, mas pelo Caprichoso, porque são eles que contribuem para a festa de nossa cidade.
Pela idade de tem, vocês têm muito a oferecer ao Boi?
S. Cristina – Com certeza. Quem sabe daqui a um tempo ser um item ou mesmo ser organizadora, coordenadora. Porque GS é para isso, para crescer realmente. Ainda tem o Garantido Jovem (GJ) que é também para progredir dentro do boi.
E vocês participaram pelo GJ?
S. Cristina – Bom antes de passar pelo GS, a gente passou pelo GJ, que era assim, ajudar os jovens a progredir, dando cursos de computação, inglês, espanhol, porque muitos não têm condições de pagar um curso, aí o GJ era para isso, ensaiar as danças, coreografias para apresentar no curral. Oferece cursos de conserto de bicicleta que é o grande meio de transporte daqui. E curso de pintura e arte que tem nos galpões de criação, os QG’ s.
Entrevista com Talita Brasil, dançarina do grupo Canto da Mata do Boi Caprichoso, parintinense, 16 anos.
O que é o grupo Canto da Mata (CM)?
T. Brasil - É uma das bandas oficiais do Boi Caprichoso que à 10 anos faz apresentações .
Existe algum concurso para entrar ou é dom mesmo?
T. Brasil - Aqui em Parintins eu já dançava, aí quando fui para Manaus, tava dançando, e assim do nada, me viram dançando e me convidaram. Quando fui estudar em Manaus veio o convite para participar do grupo CM, vestir a camisa porque conheço de coreografia.
Através do grupo tem como fazer parte do festival?
T. Brasil - Eu já recebi convite para ser item do Garantido, do boi contrário, para ser Rainha do Folclore. Mas como o coração é de fé Caprichoso, não podemos trair. Eu visto a camisa mesmo.
Mas é projeto futuro ser uma figura destacada no Boi?
T. Brasil - Para mim seria uma grande honra, por ser Caprichoso.
Vocês fazem viagens com o grupo pelo Brasil e pelo exterior para divulgar a cultura e as apresentações. Quer contar alguma viagem inesquecível?
T. Brasil - Tive uma experiência ótima que foi a viagem para Barcelos, cidade do amazonas que tem um festival tipo dos dois Bois daqui. Mas lá como é a cidade do peixe ornamental, são a briga de dois Peixes, o Cardinal e o Acaradisco. E fui convidada para ser Rainha do Folclore neste ano. Muito emocionante porque foi a 1ª vez que dancei de porta-estandarte, e por isso que marcou esta viagem por está lá representando. E quem ganha muito com isso são os artistas de Parintins, que não param, acaba aqui o Festival e vão para outro município com festas ou para o carnaval de São Paulo, Rio, onde são muito requisitados. No festival eu me entrego total ao CM.
Assim como podemos perceber o sentimento de orgulho em adolescentes que estão só iniciando a carreira artística, acreditando no amor e dedicação depositados à agremiação folclórica pelas perspectivas de retorno, existem os artistas consagrados que são exemplos para estas pessoas e confirmam o potencial do FFP.
Entrevista com Denildo Quissanã–“Tripa”22 do Boi Garantido (B.G.) na Cidade Garantido[23].
Quissanã é um nome indígena?
D. Quissanã - É um grito de guerra que em Tupi-guarani é um pássaro, uma águia.
E a quanto tempo você sai de “tripa” do B.G. no FFP?
D. Quissanã -Para ser um “tripa” tem que ter muita dignidade, tem que ter muito amor ao Boi. Porque ele representa a nação vermelha-branca, ele é o dono da festa, e ser o “tripa” a emoção é grande, porque ele está dando vida a um boi de pano. Ele é que dá a emoção na arena.
Então poderia dizer que o “tripa” é o personagem principal dentro de todo o festival, entre todos os itens que compõem tanto o julgamento como a própria tradição do Boi-bumbá?
D. Quissanã -Com certeza. Porque o Boi, os dois Bois, sem os dois Bois não teria a festa, ele é a peça fundamental, ele é o próprio pilar da festa, são os dois Bois. Tanto o Boi Garantido como o “contrário”.
Como foi que à 10 anos atrás surgiu a oportunidade de ser “tripa”?
D. Quissanã - Foi num concurso. Eu fui o segundo, mas no dia 28,29,30 de junho, eu estava de primeiro (...) porque o outro “tripa” estava sem preparo, eu estava bem preparado, e ganhei a vaga...
Quais os pré-requisitos que te levaram a alcançar o 2º lugar e posteriormente o primeiro?
D. Quissanã - O quesito que tinha era a revolução na arena (...) só ficou nós dois, está no sangue, e até hoje eu sou o primeiro e ninguém me tira.
E quando você está na arena o que conta ponto, o que vale para fazer a revolução na arena?
D. Quissanã - Eu estou representando uma nação vermelha e branca, a emoção vem muito daí, a “galera” é que leva o boi ao fazer a revolução na arena (...) e acho que tudo isso depende muito do meu trabalho, do meu amor que tenho pelo Boi, o amor do meu trabalho de ser um item do Boi.
Quando você faz a coreografia, tem uma coreografia própria ou é tudo de cabeça, como é para determinar os passos, entrar no ritmo das toadas[24]?
D. Quissanã - Muita técnica, muito show que eu dou, é um boi real mesmo. Eu assisto muito o boi real na fazenda, e daí eu tiro os movimentos que eu posso fazer na arena, um boi real (...) por isso que eu vejo os movimentos dele, como ele está comendo o sal, o que ele faz, ele mexe o rabo, mexe a orelha, como é que ele come, ele abaixa o queixo para ver, mastiga para frente e chega para o lado, em tudo isso eu presto atenção para fazer o mesmo na arena.
Eu andei sabendo que existe o efeito surpresa[25] dentro do festival, e parece que há mais de um boi. Você seria o principal, teria mais algum quando se faz este efeito surpresa?
D. Quissanã - Não. Isso é em termo, sou eu é que faço os bois, sou eu que trabalho neles, sou é que sou o criador das criaturas...
Como está o coração faltando poucos dias?
D. Quissanã - A emoção fica mais controlada, mas a emoção mesmo é quando pego o boi na arena e pronto, aí a emoção começa, de mim para o boi, de vestir o boi e dar vida a ele.
É muito complicado manusear o boi high tech[26]?
D. Quissanã - É tudo manual, isso depende muito de mim, por isso que a preparação da academia é muito importante, porque uso muito braço e perna, e a mente porque praticamente eu não enxergo nada, só tem um buraco que dá visão para todo o bumbódromo, e que é para frente.
E você nasceu em Parintins?
D. Quissanã - Nasci em Parintins, praticamente foi dentro do curral[27] do boi.
Como assim?
D. Quissanã - É que a minha casa é quase em frente ao curral do Garantido, quando ele era lá na Baixa (localidade da cidade), acho que passa umas cinco casas para ser a minha. É praticamente a mesma pele, já vem do sangue isso.
E você pretende ser “tripa” quanto tempo?
D. Quissanã - Depende da perna está bem. Eu acho que esse é um momento importante para mim, até por causa que eu tenho um filho, e eu já estou ensinando o meu filho a ser o próximo “tripa” do Boi, pretendo passar de pai para filho para fazer a mesma coisa que o pai faz na arena.
Se ele não for “tripa”, ele pode ser qualquer coisa contanto que faça parte da agremiação?
D. Quissanã - Com certeza. Ele trabalha comigo na confecção do boi, eu acho que vai ser um artista nato, até porque já vem do berço. Ele nasceu, eu já fazia o boi, e fazendo o boi lá em casa, ele nasceu praticamente assim, ele viu eu fazendo o boi, deitado do meu lado, dormindo, acho que vem do berço mesmo, por causa daí que ele já pegou o jeito mesmo de como é para fazer o boi, porque é de criança que se vê para fazer adulto.
Boa sorte.
D. Quissanã - Eu é que lhe agradeço, acho que isso me dá mais força, mais mentalidade para imaginar o boi, mais um pouco para apresentar na arena.
Justamente quando a gente vem realizar uma pesquisa sobre a cultura, a cidade em relação a esta festa, a gente descobre horizontes, e este é um horizonte que você ajudou a construir e que você conseguiu expandir.
Nesta entrevista com um artista de arena fica evidente a dedicação plena ao Boi, o que é servi-lo e que demonstra a que dimensão está o folclore do boi-bumbá para o parintinense. Nota-se também a preparação, a cênica performática implementada a figura do boi-bumbá e sua importância dentro do FFP. Embora a marca que mais se registre atualmente seja a cultura indígena e a cultura do caboclo, que aparece em vários itens e componentes da apresentação do Boi, e não só com o boi-bumbá propriamente dito, peça fundamental e ator principal, que sem a “galera” e o “contrário”, paixões que o move, não é ninguém. Uma união umbilical para cada Boi-Bumbá, a alma para a emoção da encenação dramática narrada por apresentadores e motivada pelas “galeras”. É uma paixão, um amor espiritual, um fanatismo carnal. Um elo genealógico e vitalício que transparece num trabalho digno durante o tempo de preparação e apresentação do FFP.
Uma cultura criadora de expressões que justificam as marcas seculares do folguedo popular e que tem o seu próprio berço. Manifestando uma escola inesgotável de energia e criações que a tornam exportadora e importadora de técnicas e estéticas para outras manifestações artísticas nacionais. A beleza e graça do Festival se devem a alguns meses de muito trabalho em torno da preparação do boi que se dá através das idéias e das mãos de pesquisadores, profissionais de Artes e artesãos, que ao colocarem o boi na arena, aparecem na forma de cores, penas, sementes danças e encenações. Para Emerson Brasil, artesão e integrante a (6) seis anos da Comissão de Arte do Garantido, diz que "o artesão em Parintins não tem um limite de idade, por acreditar que o parintinense nasce com isso na alma, é um dom", bastando-lhe a oportunidade para se desenvolver. Quanto à isso Ozéas Bentes, 39 anos, a 20 anos como artesão de alegorias, se refere bem:
"Nosso Festival é desenvolvido como uma escola, para todos os profissionais e artistas daqui. O ensino disso vem da rivalidade e da tradição, porque o outro lado contrário e o lado Caprichoso há uma disputa, querendo fazer melhor do que o do contrário (...) se desenvolve, corrigindo seus erros (...) no que dá certo e o que não dá. Tudo vai se arriscando. E hoje existe uma mão-de-obra qualificada no Festival, cheia de erros como em qualquer setor, mas estes erros vêm tratando o aprendizado de cada artista. E eu comecei a desenvolver minha arte vendo os mais experientes fazer aquela arte. "[28]
Existe uma trajetória a ser seguida por cada artista para crescer na profissão, através do conhecimento alheio e de um auto-conhecimento o ser humano se desenvolve, e neste caso assim como em qualquer oficina na história da humanidade, o homem primeiro é discípulo para um dia se tornar mestre da obra. Ao entrevistar Chico Rudela, artesão à 19 anos do Garantido, lhe perguntei se de discípulo ele passou à mestre, e ele disse:
"É um pouco disso. Porque em Parintins todo mundo começa desde muito cedo, procurando aprender, a se dedicar. E em cada equipe sempre se destaca um, quem tem mias sorte consegue ter o próprio trabalho dentro do boi (...) No Garantido, eu trabalho por conta própria a 16 anos, desde os 14 anos, foram (3) três anos de ajudante e depois por conta própria (...) Eu fazia parte de uma equipe e participava só como ajudante, e depois disso eu passei à assinar o próprio contrato."[29]
O festival está tão divulgado no Brasil e no mundo como uma grande atração turística, devido a uma série de pessoas que estão envolvidas com todos os tipos de criações artísticas dentro dos galpões das agremiações. Um trabalho feito por pessoas humildes, simples, da terra, mas que sabem o verdadeiro valor desta realização. Sentimento expressado em palavras por David, à 10 anos como artesão de tribo e tuxaua do Boi Garantido, nascido e criado na Baixa do São José, vermelho de coração, e que já esteve por mais (9) nove anos no lado do Caprichoso, disse:
"... quando é lado profissional, eu também abraço os dois lados. Se eu tiver envolvido lá, se eu estiver defendo as cores do outro lado, eu viro (...) quem ganha com isso é o Festival de Parintins, é o nome da cidade que vai longe, é a cultura do Amazonas, tanto é que o boi é o ritmo do Amazonas e a gente faz com coração, pois a gente trabalha levando o nome do artesão e o nome da cidade de Parintins."
A Arte vem de dentro do ser humano, faz parte do ser humano, tem que ser feito com amor, dedicação e o respeito à quem se faz, para que este retribua da mesma forma. Mediante a experiência e responsabilidade se dá a relação entre as agremiações de bois-bumbás e seus fiéis artesãos. Ozéas Bentes assim demonstra:
... o Festival tem uma coisa importante que ajuda no crescimento, que é o orgulho pessoal que o artista recebe, faço esperando a resposta das pessoas, porque quando não está bom você é criticado, mas quando é bom, é elogiado, e isso faz com que a gente cresça (...) o trabalho de Arte é sofrido, porque não é mil maravilhas, enfrentamos dificuldades, falta de material (...) E na Arte se viaja muito, tem que ter limite, mas o sofrimento faz parte do amor à Arte que a gente tem, e se supera tudo isso."
O trabalho dos artistas e artesãos, cercados de segredos e mistérios, realizado nos galpões, conhecidos como QG’s, foi bem explorado por Andréas Valentin[30] em sua dissertação de mestrado em ciência da Arte “Contrários – a celebração da rivalidade dos bois-bumbás de Parintins”, a fim de desvendar as formas de produção dos instrumentos artísticos a serem apresentados no espetáculo dos bois-bumbás na arena do bumbódromo para disputa do FFP. Valentin revela como uma situação de conflito se transforma numa celebração criativa e edificante. Fotografando os QG’s revela aspectos da criatividade, habilidade e orgulho dos artistas, além dos mecanismos e processos de rivalidade nas estratégias para o conflito da arena e na confecção de alegorias, fantasias e adereços, guardados em total sigilo para os dias das apresentações. Os galpões são as fábricas de sonhos dos criadores dos Bois, espaços resguardados de mistérios, no qual a Arte está cercada por segredos e surpresas que darão o triunfo do espetáculo. Através destes se têm um caminho, pelos bastidores, para se compreender a festa de Parintins.
As raízes do espetáculo estão nos bastidores da preparação dos bois-bumbás, revelando cenários de arte, criatividade e paixão. Nos QG’s se destacam figuras pouco conhecidas do grande público e dali sai o resultado quase industrial de construção do FFP.
Tudo começa pela escolha temática, daí passa-se para a inspiração dos compositores de toada, que são a ponte de partida para a pesquisa e trabalho dos artistas da Comissão de Arte do Garantido e do Conselho de Arte do Caprichoso. O Projeto configurado destes grupos parte para os galpões, onde se preparará a moldagem e confecções dos artesãos. Para que nos dias 28, 29 e 30 estejam prontos para o FFP.
Inaldo Medeiros, coordenador do galpão de tribo e principalmente compositor do Boi Garantido revela com irreverência o processo para compor suas toadas:
“Primeiro é a vivência senão não tem como compor. No maior, é a maior floresta do mundo, o maior rio do mundo, a maior biodiversidade, a riqueza de nossas tradições nesta terra, está tudo aqui, acho que isso tudo inspira a gente, to cercado por todos os lados. É um paraíso de inspiração total. Eu digo que tenho tanta inspiração que sou capaz de compor uma bula de remédio como receita de bolo.”[31]
A escolha das toadas é um disputado concurso, com mais de 200 toadas, que ocorre entre outubro e novembro. Tudo isso por um lugar ao sol e ao prêmio de R$ 2,5 mil por composição que inclui o direito de arena. Os julgadores levam mais de um mês para chegar ás decisões finais. Inaldo Medeiros no ano de 2004 mais uma vez estava lá e sem modéstia disse:
“Eu tenho três composições. Eu sou o campeão de botar toadas no CD. Ninguém até hoje teve a façanha de por seis toadas no CD, e eu já consegui isso aí. E esse ano eu tenho três toadas: Rei dos rios, Coração de Batuqueiro e uma de desafio, Boi cara-de-pau.”
O trabalho mais laborioso e exaustivo do processo de construção do boi de arena fica a cargo da Comissão e do Conselho de arte dos Bois Garantido e Caprichoso respectivamente. No projeto são descritos dez tuxauas, dez tribos por noite, todas as fantasias por itens individuais, rituais, figuras típicas, roteiro para apresentador, coreografias e cênica. Esse material é popularmente conhecido como “tempestade de idéias”, e pronto, passa a ser distribuído para os artistas de ponta e suas equipes compostas de artesãos, escultores, pintores, serralheiros, aderecistas, eletricista, iluminadores. Ciro Cabral, integrante da Comissão de Arte, revela “fazemos a pesquisa do traço da tribo original, se existir, ou se for uma tribo extinta procuramos estimular a criatividade do artista. Sempre levamos em conta que o índio amazônico não usa tantas plumas, tantas penas e, assim, o artista tem sempre liberdade para criar”[32]. Perguntando para Emerson Brasil sobre a possibilidade do artesão ter a liberdade de mudar um projeto, ele respondeu:
“... a gente repassa para o pessoal. A parte de tribal, protótipo, mas se no decorrer do trabalho, ele tiver uma idéia que é melhor, que supere, a gente chama a Comissão de Arte e se for aprovado, não tem problema nenhum.”
Ozéas Bentes sobre este assunto respondeu:

“Existe uma liberdade dentro daquela linha que vem de lá, se tem uma idéia e vou tentar mudar, mas dentro do roteiro (...) questões da parte alegórica, de efeito e de movimento, essa criação há liberdade (...) porque vai levar para arena, o jurado está olhando o histórico e está assistindo, comparando e não pode ter este erro. O Caprichoso tem a preocupação e fomos campeões ano passado em cima disso aí (...) seguimos uma linha para quem está julgando não se perca (...) acho que a liberdade pode ser um risco que a gente corre...”
Ricardo Peguete, coreógrafo e diretor cênico do boi Garantido, acha interessante se aprofundar mais em cima do projeto que lhe vem as mãos.
“... vai do coreógrafo se aprofundar mais e querer pesquisar mais correlação a uma nação tribal. Por exemplo: os Saterés-Maués, eles me passaram um resumo para efeito de desenvolvimento, para ter este elemento e mais -elementos, o que eu faço? Eu procuro me aprofundar mais ainda no que eu possa aproveitar em questões de danças e costumes, para eu jogar isso em movimento e possa dar uma dinâmica maior, uma dramatização maior.”
Das cabeças inventivas e mãos mágicas de todos estes artistas surge a arte de materializar as fantasia humanas. Imaginações que criam e recriam tudo, traçando formas, dando cores e proporcionando vida através de efeitos e movimentos. Tudo dentro do contexto plural do regionalismo amazônico. Salvem estes mestres, mágicos e alquimistas da Arte.
O resgate e preservação da cultura indígena dentro do festival.

Nesta questão cada vez mais o FFP vem alçando vôos mais altos e corajosos. As incorporações dos elementos da cultura do caboclo e indígena fazem a diferença do boi-bumbá amazônico. Por exemplo, a habilidade do povo parintinense com os produtos extraídos da floresta como: palhas, sementes, contas, são frutos das tradições da arte indígena. E hoje dentro do festival, tribos, tuxauas, rituais, lendas e personagens típicos do universo mítico tribal estão introduzidos ao lado de figuras tradicionais do Auto do Boi, sem sobrepô-los. A importância desta introdução se deve ao resgate e preservação das culturas indígenas, destacando suas lutas, seus mártires e mobilização em torno do crescimento tribal, onde diversas nações, após a criação de áreas de proteção das terras indígenas, voltaram a crescer e resgatar ritos, festas e costumes de suas tradições.
Nas apresentações os bois-bumbás trazem alegorias com tribos (tribos de composição) no qual compõem-se elementos do cotidiano do nativo, e destacando nas tribos de coreografias, a arte plumária, pinturas corporais e diferentes formas de dançar. Nas lendas amazônicas estabelecem a Cunhã-poranga e a Rainha do folclore como os itens de destaque sob a expressão de uma áurea mágica do imaginário indígena e do caboclo. E nos Rituais indígenas recriam ritos xamanísticos comandados pela figura do Pajé no qual destaca suas habilidades como: feiticeiro, sacerdote, xamã, curandeiro e guardião das tradições dos sagrados cultos e ritos ameríndios, como forma de manutenção da tradição tribal e dos sincretismos destes povos da floresta.
“A incrível facilidade com que o índio ouve, retém e transmite, já inconscientemente modificada, qualquer estória, multiplica o mundo fantástico, alargando as fronteiras móveis da imaginação criadora (...) O caboclo, na sua convivência com as centenas de tribos, assimilou e deu nova roupagem a muitas lendas, principalmente após a chegada dos nordestinos vindos no início do século XX, com a febre da borracha e, desta forma, juntando com as estórias de catequese com tradição religiosa ameraba.”[33]
Com este mesmo embalo os artistas e artesãos se aprimoram neste universo vasto dos indígenas para tornarem sonhos em realidades. David, artesão de tribos e tuxauas, perguntado sobre esta transformação lúdica e de alta responsabilidade respondeu:

“Quando a gente trabalha com tribo de composição a gente tem que fazer completo como se fosse mesmo realidade. É uma maneira de fazer o passado pra dentro da arena, porque eles passam pela história da tribo, e ninguém vai fazer nada diferente porque é uma falta de respeito com os índios que tem a sua cultura. E a gente vai e apresenta uma coisa diferente na arena, aí os historiadores e as pessoas que vão fazer o julgamento vão dizer que está errado. E os índios também vão assistir e vão se sentir ofendidos por eu tentar mudar. Na tribo de composição tem que fazer igual mesmo como se fosse a tribo. Já na tribo de efeito, de impacto, de visual a 100 metros de distância que o jurado fica, a gente trabalha em cima das cores, já traz mais ilusão, muita cor, explosão, brilho que se leva para arena. O artificial está presente em tudo. Trabalho com escultura, pena, a gente tenta levar o visual. São dois tipos de tribo: da cênica quase real, e a de impacto (tribo de arena ou coreográfica).”
Leonardo, dançarino, artista de teatro e integrante de uma tribo de composição do Caprichoso, revela detalhes desta participação, no qual tem que transmitir o espírito indígena da floresta, do selvagem:
“...trabalho com arte cênica que é desenvolvido por jogo de corpo, movimentos com a face do rosto na parte de rituais nas alegorias de tribo de composição (...) usa muito expressões do rosto, as garras das mãos, fazer cara de mau, tem que ser tribal, bem índio (...) uma coisa folclórica. E no momento para fazer as apresentações de índios eu tenho que pegar sol, ficar bem moreno (...) E é isso que o pessoal do FFP tenta passar para o povo do mundo inteiro (...) participo da tribo de composição no ritual Cara de Gato dos índios da tribo Mundurucu. Os índios são sacrificados por uma onça muito grande que tenta invadir esta tribo e acabar com os índios. Aí chega os gigantes Mariwi, que são homens de folhas de samambaia e nessa cênica a gente tem que passar o espírito dos índios, nossos lábios estão passando a emoção, o medo (...) A cênica serve para mostrar a realidade que é o FFP. A coreografia vem com a música com aquele passo do índio lá em baixo, UCA UCA mesmo, mostrar para o povo o índio (...) tem que mostrar a cultura do índio através da dança, da raiva, da linguagem, mostrando o lado selvagem.”[34]
Um outro aspecto de grande valor do FFP são as fantasias de Tuxauas, que antigamente eram representados de forma pormenorizada, e com o passar do tempo em torno do desenvolvimento das técnicas dos artesãos se tornaram um dos grandes momentos do espetáculo, quando entram dez estruturas ao mesmo tempo evoluindo na arena. Rogério S. Matos, artesão de Tuxauas, relata:

“... hoje, não é só tribo e alegoria. O tuxaua está no centro das atenções dos turistas e visitante que vem a Parintins, e não vê o tuxaua que era aquele cocazinho na cabeça (...) Quando fala em tuxaua, fala em líder da tribo, ele vem para puxar a tribo de arena...”
Ozéas Bentes demonstra a dimensão da cultura indígena nas criações artísticas e recriações que a tornam sempre inédita no FFP e revela que o universo aborígene é “...uma cultura muito rica que dá condições de refazer aquilo de várias formas, e faz com que se movimente, o trabalho indígena demonstra muita arte.”
Conclusão
Na luta pela conquista do FFP de 2004, a festa da vitória foi em vermelho, na Baixa do São José, no curral do Garantido.
O festejo popular que veio das ruas, e que de forma lenta e gradual ao longo do tempo tornou-se numa disputa sadia em torno do folclore, utiliza uma política cultural voltada para seu espetáculo, e do capital de seus patrocinadores para se auto-sustentar e promover o desenvolvimento social em torno das agremiações folclóricas de bois-bumbás. O caráter performático do festival, da disputa, da dança no ritmo das toadas, o teatro baseado em pesquisas indígenas e da cultura do caboclo, misturado ao auto do boi, reflete o boi-bumbá amazônico como marca regional única estruturada em uma base sólida, híbrida, e de agregação de diversas culturas em uma só, a partir da formação histórica desta região do país.
O folclore do boi-bumbá amazônico se apresenta como uma memória social e força cultural que funciona como a tradição atual de um povo frente ás antigas tradições indígenas e de culturas externas reinterpretadas durante sua formação histórica.
Notas
[1] O "bailado", passos de dança originados dos índios e desenvolvidos como tradição do folclore parintinense.
[2] Letra e música do boi-bumbá amazônico.
[3] Conceito compreendido no IV Seminário Nacional TRANSE com a proposta: Patrimônio Imaterial, performance cultural e (re) tradicionalização, que teve suas diretrizes expostas em TEIXEIRA, João Gabriel L. C ., et al (org). Patrimônio imaterial, performance cultural e(re) tradicionalização. Brasília: ICS-UnB, 2004.
[4] Auto dramático. O fazendeiro coronel, denominado de Amo do boi, tem uma filha, conhecida como Sinhazinha da fazenda. Ela tem uma paixão doentia pelo boizinho da fazenda. Catirina, mulher negra de Pai Francisco, está grávida e deseja comer a língua do boi. Por isso induz Pai Francisco a matar o boizinho. Ele mata o boi para satisfazer o desejo de Catirina, mas antes de retirar a língua do boi, o crime é descoberto por Sinhazinha que passa a sofrer. O criminoso é caçado e preso. O Amo do Boi para sanar a dor de sua filha, chama o Pajé da tribo para ressucitar o boizinho. Na encenação do auto no FFP, a morte e a ressurreição do boi deixaram de existir a partir do fim da década de 70, embora se mantivessem os personagens em conjunto a outros personagens e itens relacionados à cultura indígena e do caboclo.
[5] Revista Parintins – cultura e folclore. Número 2, 2001. p. 102
[6] Expressão que o simpatizante de um boi se refere ao rival.
[7] PINHEIRO, Roosivelt Max Sampaio. Cultura visual e práticas artísticas no 36º Festival Folclórico de Parintins. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p. 16
[8] Esta antiga tradição persiste na forma do Boi de rua ou Alvorada do Boi. Festa que envolve a comunidade brincante até o dia amanhecer, acompanhados da Batucada ou Marujada – bateria dos Bois-bumbás, em dias alternados, percorrendo a cidade junto com o povo e prestando homenagem aos seus fundadores, membros da diretoria, e artistas consagrados.
[9] Artistas como Joãozinho Trinta reconhecem as qualidades artísticas do Festival como pólo de intercâmbio de recursos técnicos, estéticos e humanos.
[10] As alegorias apareceram na década de 70 por esta influência, contando histórias do cotidiano do povo amazonense. O impulso na cultura do caboclo para as apropriações dos costumes populares, das lendas da Amazônia e da cultura indígena evoluíram ainda mais a partir da década de 80.
[11] Nome sugerido para o FFP por PINHEIRO, Roosivelt Max Sampaio. Op cit. p. 140
[12] A arte e o folclore de Parintins são responsáveis pela geração de renda, emprego para milhares de pessoas e uma melhor qualidade de vida para o povo.
[13] Povo guerreiro que migrou para a serra de Parintins.
[14] Pescado protegido por lei.
[15] Bebida extraída da mandioca aprendida com os índios.
[16] Sede administrativa com a quadra de ensaio das agremiações.
[17] Miscigenação entre o índio e o branco. Mas que devido à formação histórica brasileira desta região detém em menor proporção o sangue da raça africana e de etnias orientais.
[18] Nomenclatura relativa a índio na língua tupi.
[19] Estádio construído para ser palco das evoluções folclóricas, inaugurado em 1988. Popularmente chamado de “arena” tem o formato estilizado da cabeça de um boi e capacidade para 35 mil pessoas – tendo em vista pra os próximos anos o projeto de duplicação desta capacidade. Do lado vermelho fica a galera do Garantido e do lado azul fica a galera do Caprichoso. Enquanto um Boi se apresenta a galera do Boi contrário fica respeitosamente assistindo, quer dizer, metade da arena em silêncio e a outra brincando. Isto faz parte do jogo, devido as galeras serem item de julgamento e contarem pontos.
[20] Integrantes que saem nas agremiações ou que brincam de boi-bumbá.
[21] Revista Parintins – Toada e boi-bumbá. Amazonas: Amazon Best, 2004
[22] Homem que se fantasia de boi-bumbá nas Associações Folclóricas de Parintins; item de julgamento do Festival Folclórico de Parintins.
[23] Complexo da Associação Folclórica Boi-Bumbá Garantido que consta da: sede administrativa, núcleos quadra e galpões de criações de alegorias, fantasias e bateria.
[24] Ritmo musical do boi-bumbá amazonense.
[25] Durante a apresentação nos dias do festival, o boi com o “tripa” aparecem de surpresa em diversas áreas do bumbódromo – estádio de arena.
[26] Expressão usada para enfatizar a tecnologia usada na confecção da fantasia de boi.
[27] Expressão para designar a Cidade Garantido.
[1] Entrevista realizada em Parintins em junho de 2004.
28[30] Professor, fotógrafo, designer gráfico e autor de dois livros sobre Parintins
[31] Entrevista realizada em Parintins em junho de 2004.
[32] Revista Parintins. Op cit. P.16
[33] Revista do Caprichoso. Op cit. P. 26
[34] Entrevista realizada em Parintins em junho de 2004.
Bibliografia:
PINHEIRO, Roosivelt Max Sampaio. Cultura visual e práticas artísticas no 36º Festival Folclórico de Parintins. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
Revista Parintins – cultura e folclore. Número 2, 2001.
Revista Parintins – cultura e Folclore. Número 3, 2002.
Revista Caprichoso. Amazonas, terra do folclore, fonte de vida. Amazonas: 2004.
Revista Parintins – Toada e boi-bumbá. Amazonas: Amazon Best, 2004.
TEIXEIRA, João Gabriel L. C ., et al (org). Patrimônio imaterial, performance cultural e (re) tradicionalização. Brasília: ICS-UnB, 2004.
VALENTIN, Andréas. Contrários – a celebração da rivalidade dos bois-bumbás de Parintins. Niterói: UFF, 2004.