Performance e homoafetividade em dois romances de João Gilberto Noll[1]
Paloma Vidal | Universidade de Brasília
Abstract:
This article talks about the relationship between performance and homo-affectivity in two recent books by Brazilian author João Gilberto Noll. Berkeley em Bellagio (2002) and Lorde (2004) take place in globalized landscapes so that Noll can continue with his search for community, a trait which is relevant in his oeuvre. It is a way of fighting against the post-modern indifference which, as it homogenizes bodies and places, conjures up its conflicting heterogeneity. Putting literature and performance side by side, these narratives place the writer himself "on stage," facilitating the possibility of getting to know the Other within the homo-affectivity terrain.
I.
O escritor brasileiro João Gilberto Noll começou a publicar no início dos anos 80 e desde então vem se apropriando dos cenários desolados da pós-modernidade para neles abrir espaço para “uma certa pulsão por um ethos, onde as coisas estão ainda no seu estado selvagem, no seu estado quase que desgovernado” (Noll, “A literatura é muito perigosa”), pulsão capaz de definir novas formas de vida, de convivência e de circulação num mundo órfão. “O que fazer, no dia-a-dia, depois da morte do pai?” (Lopes 207), pergunta o crítico Denílson Lopes. A pergunta é central na narrativa de Noll. Nela, pais, mentores, acompanhantes, seres que deveriam amparar, não amparam, desaparecendo no mundo ou morrendo prematuramente. Nesse estado de precariedade, em que as figuras paternas se rarefazem assim como os contornos nacionais, surgirá um desejo de fusão, de comunhão e de comunidade que indicará novos campos da afetividade a serem explorados.
Em suas narrativas mais recentes, observamos que essa exploração se faz através de uma aproximação entre o narrador e o escritor: o narrador é o escritor brasileiro e sem meios, que vê no convite de instituições estrangeiras a possibilidade de não “ter de mendigar de novo em seu país de origem” (9), como lemos Berkeley em Bellagio (2002). Nesse romance a aproximação se expressa, por exemplo, numa oscilação entre a primeira e a terceira pessoas, às vezes dentro de uma mesma frase, como neste trecho: “além das minhas próprias malas quero carregar agora o mundo inteiro às costas, um Atlas desvalido, tudo bem, mas com uma boa vontade que lhe assoma tão forte de repente que ele só tem tempo mesmo de tentar levar o mundo às costas, entende? [grifos nossos]” (Noll, Berkeley em Bellagio 79).
O escritor se arrisca como performer ao construir a obra com o próprio corpo, expondo-o, expondo-se, numa indefinição das fronteiras entre arte e vida. Herdeira das vanguardas, um dos traços da performance é questionar os limites da arte e, nesse gesto, aproximá-la da vida. Quando o performer faz do próprio corpo seu material de trabalho, está deliberadamente questionando o distanciamento que funda a idéia de obra e apostando na possibilidade de que ela seja uma experimentação subjetiva e, quem sabe até, com novas formas de subjetividade. Não se trata necessariamente de uma inflação narcísica, embora esse seja um risco a ser calculado. Em todo caso, o traço que nos interessa aqui é o da exposição de um eu em vias de se perder, de se dissolver, sempre instável, uma pergunta lançada ao outro sobre sua própria identidade: “quem sou?, por que provoco tamanha curiosidade alheia?, o que que faço?, se é isso que todos querem ver, enfim, eu sou alguém que nada faz, que nada tem, nem ao menos o seu próprio corpo” (Noll, Berkeley em Bellagio, 53).
Nos romances em questão, o corpo que entra em cena é o de um homem que se aproxima dos sessenta anos, um escritor que passa uma temporada na Universidade de Berkeley, Califórnia, como professor visitante, e depois é convidado por uma fundação americana para se dedicar à elaboração de seu novo romance, em Bellagio, Itália. Ou ainda, em Lorde (2004), um escritor decadente e solitário, que abandona o pouco que tem em Porto Alegre por “uma graninha extra para (s)e sustentar” em Londres, onde vai cumprir uma missão profissional a convite de um inglês que mal conhece. O escritor que desembarca em Londres é um homem que se sente velho, que deixou para trás os dias em que “sonhava com um mundo fora do âmbito tropical para assentar [sua] melancolia adolescente” (Noll, Lorde 21); um homem que já deu o que tinha que dar, que “já não conseguia obter o entusiasmo necessário por povoar enfim esse mundo congelado do Norte” (Idem); um homem maduro que não parece ter nada a aprender, mas que também não parece poder oferecer a “decantada sabedoria do idoso” (25). Para que viaja esse homem?
No ensaio, “A viagem e uma viagem”, Denílson Lopes analisa o retorno da imagem da viagem na literatura contemporânea como uma atualização da discussão em torno da Bildung. “Por que e para que aprender? É possível uma vida como aprendizado?” (Lopes 166), pergunta o crítico, com o objetivo de problematizar o paradigma iluminista “que implicava a socialização do indivíduo, na passagem da infância para a vida adulta, e ao mesmo tempo, a constituição de um sujeito singular e autônomo, a partir de um aprendizado interior, progressivo e por etapas” (166–167). A narrativa de Noll dialoga com essas problemáticas, constituída desde o início em torno do trânsito e de uma subjetividade em crise, que embora impossibilitem um aprendizado nos moldes iluministas, talvez possam ser o ponto de partida para uma versão contemporânea do romance de formação.
Em Lorde, encena-se uma situação que os dados biográficos confirmam, ao menos até certo ponto. A correspondência factual, no entanto, não é tão interessante quanto o experimento de colocar o seu corpo para circular em Londres atrás de um desejo que se acredita perdido, atrás talvez da morte, encarando a cada esquina sua própria decadência. A viagem serve, assim, para testar os limites do eu, que se aventura a sair de si para quem sabe “alcançar aquele ponto onde tudo vaza para o infinito” (Noll, Lorde 23). O eu parece destinado a se esfarelar, a não voltar jamais a ser o mesmo: “Tinha vindo para Londres para ser vários” (28), admite o narrador. Um espelho, comprado no dia seguinte a sua chegada, deveria oferecer alguma estabilidade, mas o escritor decide nunca mais se olhar nele, nem nesse nem em nenhum outro espelho que por ventura vier a aparecer na sua frente.
Se em todas as narrativas de Noll há um momento em que o protagonista se olha num espelho em busca de um auto-reconhecimento, aqui até mesmo esse gesto vai ser abandonado. Diante do espelho do banheiro da National Gallery, munido de um pó de arroz comprado numa loja de cosméticos de Piccadilly Circus, ele se maquia para iniciar sua travessia performática. “Seria um homem distinto, a pele macia de um gentleman [...] Ninguém mais me reconheceria” (27), lemos. No dia seguinte, num cabeleireiro unissex, ele põe em prática a segunda etapa de seu travestismo, pintando seus escassos cabelos de castanho-claro. A partir de então, nada de espelhos. “Farei um pacto com o espelho [...] Eu não me olho mais nele, e em troca fico assim, querendo sempre mais. Corri para o banheiro, peguei o espelho, e o pendurei ao contrário. Eu não teria mais face, evitaria qualquer reflexo dos meus traços” (44). Sua face será agora a de um outro, quem sabe um lorde, decadente como deve ser um lorde no início do século XXI, perdido num subúrbio qualquer da capital inglesa.
Este é o início da performance em que a perda de si gerará a possibilidade do encontro com o outro. “O desafio desse sujeito é articular suas máscaras em constante troca, seu eu mutante sem se deixar dissolver no puro movimento, na velocidade, no mercado das imagens” (Lopes 171), assinala Lopes. Noll aposta nessa dissolução, talvez mais radicalmente do que nunca em Lorde: “eu desconfiava seriamente de que eu já não trazia o mesmo homem” (31). Mas pode ser que essa dissolução se mostre como “outra fonte de formação”, “essa fonte viria dali, daquele homem de cabelos castanho-claros, com a maquiagem recomposta, vivendo em Londres por enquanto sem lembrar com precisão por quê” (32). Pode ser que “desse material difuso” seja possível extrair um “novo rosto”, uma “nova memória” (34).
A possibilidade de se liberar de si é bem-vinda pelo narrador, como se lhe fosse dada a oportunidade de nascer de novo, de deixar para trás o velho escritor, esse que escreveu sete livros e que já não consegue se encontrar nem neles nem no seu corpo. Lorde é uma travessia performática sem destino certo, uma abertura ao desconhecido cujos efeitos não se pode medir de antemão, uma viagem de dissolução do eu que termina com uma estranha fusão com o outro, em que o eu desaparece para dar lugar a um novo ser, que o contém, mas não é ele. “Eu sou o professor de português, repeti o leve acento gaúcho, com a mesma disposição, a minha, só que em outra superfície, mais incisiva, oleosa, a melena espessa de bárbaro, a dele” (109), lemos ao chegar ao fim da narrativa, quando numa última viagem, de Londres a Liverpool, o narrador se funde a um inglês, dono de uma loja de ferragens, que conhece num bar. A narrativa busca a performance na travessia de um eu que afirma uma identidade, a do escritor, para melhor expor sua desagregação, aberto ao que seu próprio corpo poderá lhe trazer de novo, sem saber ao certo se poderá lhe trazer algo além da morte.
II.
Em Berkeley em Bellagio e Lorde, as travessias dos personagens se dão por uma geografia real, embora estrangeiras a eles, muito diferentes das que encontramos em Harmada (1993) e A céu aberto (1996), romances anteriores que criavam espaços predominantemente alegóricos. Se a narrativa de Noll veio deixar claro que pensar este tempo é pensar o espaço[2], não mais como um simples cenário, mas como força que produz, afeta e transforma da subjetividade, seus dois últimos romances mostram que, na passagem do século XX para o XXI, qualquer pensamento sobre o espaço é também um pensamento sobre o espaço mundializado, um pensamento sobre as fronteiras e o apagamento delas, sobre a nação e seus limites, sobre os diversos tipos de deslocamento, do turista ao refugiado.
“Minha preocupação era falar sobre o brasileiro na condição de estrangeiro e, a partir disso, abordar a mundialização” (Noll, “A literatura vive um renascimento”), afirma Noll a respeito de Berkeley em Bellagio. Num mundo supostamente integrado pela tecnologia, o escritor se vê como o “estúpido da cidadela global” (Noll, Berkeley em Bellagio 36), alguém para quem as coisas não se revelam com facilidade, que se adapta mal à nova ordem mundial, à circulação acelerada de pessoas, dinheiro e informação, daí sua busca de pontos de contato que o resgatem de seu alheamento. Colocando-se a si próprio em cena, performaticamente, o escritor faz da ficção um experimento com espaços mundializados pelos quais circula aos trancos e barrancos.
Em Berkeley em Bellagio, a travessia se inicia no campus da universidade americana. Passeando pelos bosques de Berkeley, “descia-lhe a ilusão de uma orgia intimista e conclusiva que o brindaria transportando-o para fora daquele campus, daquele país, do mundo até quem sabe” (12). A inadequação do escritor o faz ver com desconfiança o impulso humanitário de sua aluna americana, que “queria ajudar na erradicação daquela pobreza em natureza abastada que nem conseguia imaginar direito” (17). Desconfia dessa crença na filantropia, como se “o desenvolvimento dos países pobres dependesse de mutirões de dedicados voluntários desta nação aqui com dois oceanos” (Idem). Desconfia também da onipotência de uma nação que acredita poder tudo, inclusive salvar o mundo com sua boa vontade, como se se tratasse de um único e indiferenciado território indigente à espera apenas de sua caridade.
A inadequação se acentua em Bellagio, diante do descompasso entre o que o escritor esperava encontrar num vilarejo do interior da Itália, cuja imagem herdou do cinema italiano clássico, e os turistas e caminhões de obra que atravancam as ruas da cidade. Também não consegue se encaixar entre os scholars patrocinados pela fundação Rockefeller. Um deles, um equatoriano que trabalha numa gigantesca fundação filantrópica, expõe-lhe o plano para a salvação da América Latina. “A realidade é um jogo”, sustenta. “Todos devem jogar seu jogo até o fim, [...] essa é a razão de estarmos aqui. O aperfeiçoamento das regras do jogo? – ah, a única promessa” (41). Não há ética, utopia, projetos nacionais, apenas a adaptação a essas regras. Um outro, professor de sociologia em Minneapolis, pretende escrever uma obra chamada “Toward a More Equitable World” e tem também a salvação do mundo na ponta da língua: “acabar com os governos corruptos, desentravar o processo democrático em cada região, pegando a tal, a mitológica oportunidade a todo cidadão, um cidadão que poderia com orgulho se espelhar, ou melhor, se inspirar, perdão, a cada manhã na Democracia Americana” (46).
Se em Berkeley em Bellagio o escritor não poupa de sua ironia os intelectuais bem-intencionados que fazem alarde de seus planos de salvação do mundo, espelhados no governo americano e financiados por ele, Lorde mostra o outro lado dessa Pax Americana. “Lá dentro falavam português, iraniano, chinês, vietnamita, inglês, espanhol, italiano, turco. O que vinham empreender naquelas ruas que, à medida que Hackney se aproximava, iam ficando cada vez mais feias, sujas, atribuladas por obras intermináveis? Tinha sérias dúvidas de que vivessem melhor naqueles becos de Londres do que na sua escassez natal” (60). Enquanto o escritor vai se abandonando à errância pelas ruas da cidade estrangeira, entre o centro turístico glamoroso e o subúrbio abandonado, longe da proteção do inglês que supostamente deveria zelar por seu bem-estar, a narrativa vai sendo tomada por um tom paranóico. “Qual o interesse de um militar inglês em me ter na Inglaterra? Que serviço eu poderia prestar às armas ou às relações armadas entre os dois países?” (63), o escritor se pergunta.
De repente, de alguém contratado para uma missão mais ou menos indefinida, torna-se um prisioneiro, um “escravo de uma maquinação secreta” (68), arrastado por alucinações alimentadas pela nova paranóia global. Vemos então que não é à toa que o escritor circula por esses territórios mundializados. A escolha geográfica dos romances em questão revela uma dimensão política: não são apenas as fronteiras subjetivas que estão em jogo, mas as novas delimitações de um mundo cujas heterogeneidades são muito mais conflituosas do que a noção de globalização nos fez supor.
III.
Nesse cenário pós-11 de setembro, vemos emergir um desejo, expresso desde o início de Berkeley em Bellagio, de um pouco de estabilidade, de “reatar em paz o compromisso com as coisas” (16), desejo ligado a uma recuperação da memória e dos lugares. Se antes havia uma mobilidade constante, desde seu primeiro romance até A céu aberto, encontramos agora um sentimento de apego que se expressa, entre outras coisas, no desejo de recuperar uma história pessoal. Assim, “esse homem nascido em abril em Porto Alegre, no hospital Beneficência Portuguesa, às seis da manhã, criado no bairro Floresta” (28), se apega a certos “focos de resistência da memória” (22), como as caminhadas pela cidade na adolescência, quando começava a emergir o desejo desviado, “que os discursos dos padres condenavam ao silêncio sepulcral” (23).
Porém, a memória só poderá emergir fragmentariamente na experiência desse sujeito atravessado por uma língua estrangeira. “Ele não falava inglês” é a frase que abre o romance. “Ele caminhava entre esquilos pelo campus de Berkeley e pensou que não adiantava se lembrar de quase nada; precisava mesmo era ir à ação, falar inglês, testemunhar nessa língua a todos que pudessem se interessar por sua vida” (11). A língua é o que faz a mediação entre o escritor e o país estrangeiro. Num primeiro momento, ele se sente isolado, alienado até, por essa língua que ele não domina, mas aos poucos é invadido pelo temor de ser abandonado por sua própria língua e, desse modo, também por sua escrita: “todos pareciam querer sair do abrigo da língua portuguesa, menos ele, escritor, que temia se extraviar de sua própria língua sem ter por conseqüência o que contar” (20–21).
Na passagem de Berkeley a Bellagio, o inglês passa a acossá-lo: “já não conseguia processar um pensamento que não fosse em inglês” (56), ele percebe alarmado. A memória terá, a partir de então, que competir com o “súbito inglês dentro [dele]” (57). “O fluente e repentino inglês do personagem se, por um lado, retira-o da condição de pária na catedral de scholars, por outro, extravia-o de casa” (Martins 129). Se ele agora resolvesse voltar para Porto Alegre, teria que enfrentar sua nova condição: “como um gringo desvalido, sem saber o que fazer de mim numa cidade que eu já não reconheço, não sei meu endereço, não lembro de parente, se perguntam onde fica essa tal rua eu nada entendo, se sou eu a perguntar alguma coisa é a outra pessoa a me olhar sem dar rumo ao pensamento, o inglês é minha língua de repente” (64). Assim, da condição de estrangeiro que não fala a língua do lugar, ele passa a estrangeiro em sua própria língua, numa viagem que parece não ter volta: “se o português ao menos retornasse, se eu pudesse me virar novamente em Porto Alegre” (75).
O estranhamento da língua materializa uma condição que lhe é própria: “disse-lhe em meu inglês esfarrapado que eu era o caçula de uma família de nove irmãs, e que me sentia um sobrevivente de mares femininos, que me perdoasse então pelo fato de ser assim aéreo, como se nunca tivesse conseguido o fio pedestre de nenhuma fala, em qualquer língua” (27). Sua língua, que em algum momento o representou “limpo, estruturado”, não cumpre mais essa função. Agora, no choque com a língua estrangeira, ela deixa em evidência uma indisposição consigo mesmo, o vestígio de sua condição de estrangeiro no universo feminino. “Quem me responde, e já, se o fato de eu estar aqui andando pelo bosque em plena madrugada me confere alguma garantia de que eu não seja um outro que de fato sou, um estrangeiro de mim mesmo” (37). A viagem descortina, assim, uma condição subjetiva frágil, instável, e também permeável ao que a errância possa trazer de novo. “No trajeto da escrita”, afirma Ítalo Moriconi na orelha da edição de 2003, “o eu oscila entre celebrar e sustar sua auto-dissolução. O eu se constrói e se dissolve, ao mesmo tempo”.
Aqui, como em todas as narrativas de Noll, o personagem é movido por uma “vontade de se imprecisar”, “deixando de ser um indivíduo situado em entornos determinados para ser uma entidade incerta” (Laddaga 197). Só que, como notou Moriconi, ao movimento de dissolução corresponde neste romance um outro movimento de construção, ou reconstrução, do eu, uma tentativa de “começar tudo de novo, voltar a ser aquele que eu era antes de me meter em Berkeley e Bellagio” (75). Essa labiríntica trajetória se resolve no final com um reencontro da língua, da cidade e do amante. “Começo a compreender na alma onde estou, com quem estou, há quanto tempo, não faz muito eu sei, alguns minutos, devagarinho vou ganhando a lembrança do meu português, a língua sai de mim em pedacinhos” (89). A viagem, pela primeira vez nas narrativas de Noll, abre a possibilidade de “se aprender a sentir, ultrapassar a mera sobrevivência, ousar empreender uma educação dos sentidos e sentimentos” (Lopes 173).
Tal aposta poderia se situar no terreno de uma homoafetividade, capaz de fazer surgir um “importante questionamento da afetividade no horizonte masculino” (Lopes 37). A noção aponta para a possibilidade de dissolver uma dicotomia surgida no século XIX entre homossociabilidade e heterossexualidade que, como sustenta Gabriel Giorgi, “descrevem o esquema básico (e ideal) deste regime em que, enquanto o corpo feminino se sexualiza (e histeriza) e fica inscrito num universo homossocial que quer ser mediado pela figura masculina, os vínculos entre homens se restringem a uma economia de desejo social (emulação, competição, rivalidade, ‘identificação’ etc.)” (Giorgi 31). Na esteira dos estudos de gênero mais recentes, que enfatizam a necessidade de desconstruir identidades ao invés de reforçá-las, a homoafetividade poderia dar conta de relações que não buscam definições que as institucionalizem, mas uma abertura para novas formas de vida.
O final de Berkeley em Bellagio abre um espaço afetivo em que se desenrola a vida do personagem, convivendo com Léo e sua filha, Sarita: “Léo, ela e eu em volta de uma mesa, a brisa na janela, os dois pais dessa menina adivinhando calados que hoje parecia um dia mais do que adequado para Léo me visitar à noite no sofá da sala” (100). O escritor, que explicita sua homossexualidade desde o início da narrativa ao se referir a Léo, “o homem a quem costumava chamar de namorado” (9–10); que expõe sua sexualidade como “uma quimera em carne viva, louco como em Porto Alegre pra [s]e jogar na cama e meditar sobre a delicadeza de um outro homem” (63); que transgride o lugar reservado ao scholar no encontro com o ragazzo de Bellagio, “levado pelo escritor porto-alegrense para trás de uma cortina malcheirosa pelo tempo” (30); a esse sujeito, que erra pelo mundo com seu desejo à flor da pele, é dada no final da narrativa a possibilidade de uma vivência afetiva que se dá fora do convencionalismo familiar, criando uma família alternativa e transitória, cujo potencial transgressivo reside em não esquivar “a sombra passageira insinuando que todo aquele quadro poderia expirar a qualquer hora” (Noll, Berkeley em Bellagio 100).
Notas
[1]Nasceu em Porto Alegre, em 1946. Seus romances e contos foram premiados diversas vezes desde a publicação de seu primeiro livro, O cego e a dançarina, em 1980, além de traduzidos e estudados na Grã Bretanha e nos Estados Unidos. Publicou ao todo treze livros, sendo o mais recente A máquina de ser, um volume de contos de 2006.
[2] Lemos numa entrevista: “o presente pra mim é o que mais me inspira. O presente imediato, o espaço onde eu estou. Eu não sou um escritor voltado para o passado, para a reconstituição histórica de fatos ou de épocas” (Noll, “A literatura é muito perigosa”). Se a geografia vem antes que a história, o olhar vem antes que a memória: “para quem ama o dom da visão, a geografia é tremendamente pródiga para a criação. Não são, portanto, os fatos vividos que eu retrato com mais empenho” (Noll, “A literatura vive um renascimento”). Nesse olhar espacial reside para Noll a possibilidade de construir “um afresco do tempo em que estamos vivendo” (Noll, “A Céu Aberto ilumina a escuridão de João Gilberto Noll”).
Obras Citadas
Giorgi, Gabriel. 2004. Sueños de exterminio: homosexualidad y representación en la literatura argentina contemporánea. Rosário: Beatriz Viterbo.
Laddaga, Reinaldo. 2005. “Sobre Lorde, de João Gilberto Noll”. In Grumo: literatura e imagen, n°5. Buenos Aires, pp.196–197.
Lopes, Denilson. 2003. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano.
Martins, Analice de Oliveira. 2004. “Identidades em vôo cego: estratégias de pertencimento na prosa contemporânea brasileira”. Tese de Doutorado. Orientador: Renato Cordeiro Gomes, PUC-Rio.
Noll, João Gilberto. “A Céu Aberto ilumina a escuridão de João Gilberto Noll”.
Entrevista com Bernardo Ajzenberg. In: Folha de São Paulo, 9 novembro 1996.
---. “A literatura vive um renascimento”. Entrevista com Claudia Nina. In: Jornal do Brasil. 2 maio 2002.
---. (2002). Berkeley em Bellagio. São Paulo: W11, 2004.
---. Lorde. São Paulo: W11, 2004b.
---. “A literatura é muito perigosa”. Entrevista com Manuel do Rosário e Bruno Dorigatti In http://bagatelas.net/contos/novembro/entrevistajgnmr.htm. Acesso em 8 abril 2006.