Um corpo onde são precariamente atados aparatos técnicos[1]
Dolores Galindo | Universidade Federal do Mato Grosso
Nos seios, mouses. No estômago, uma placa-mãe. Na boca, portas de conexão. Na vagina, um mouse. Na cabeça, um chapéu de feltro. No colo, palavras escritas em batom vermelho. E, desfazendo signos identitários, uma máscara perfaz dois olhos. Há a repetição do pênis, no mouse. Há a repetição da boca, na placa de conexão. Há a repetição do estômago, na placa-mãe. Há a repetição dos seios, nos mouses. Há a repetição da face, na máscara. E aqui, a repetição é aquilo que se opõe à representação, não à diferença.[2]
Na repetição, perfaz-se um sintagma composto pela disposição dos prefixos meta, sub, ciber e trans na qual o primeiro desloca os demais da sua função literal.[3] Esquiva-se à lógica de classificação por oposições, à necessidade de conexão.

Deparamo-nos com um dispositivo sócio-técnico feito com peças e cabos que não conectam. A força da performance não está no aprimoramento das potencialidades da interatividade ou da simbiose entre corpo e máquina – os aparatos são obsoletos. Da precariedade, inscrita na adoção do prefixo sub, emerge grande parte da potencia da performance. Sonha a metasubcibertrans com computadores vestíveis ligados a outros tantos dispositivos? Os fios – repitamos - não conectam. Alguns aparatos estão, inclusive, amarelados pelo tempo. Teria a metasubcibertrans fugido de um sonho tecnológico não concretizado?[4]
No híbrido, se entrevêem os seios. A visão do contorno das pernas faz do sexo potência de criação e de relação. Sexo também obsoleto frente ao instável arranjo atado com fita adesiva. Divisa-se uma metaficcção que questiona os limites do sexo como marcador identitário e da rede de comunicação como utopia civilizatória. Desta vez, a inscrição se dá no prefixo ciber e, como indagam as integrantes do g2g,[5] grupo do qual faz parte a performer – o ciberfeminismo teria chegado à América Latina? Em nosso contexto, o tropo cyborgue funciona para a desconstrução de dicotomias sexo/genero e relações de poder de base tecnológica?[6]
Os aparatos técnicos não compõem um exoesqueleto nem são introduzidos na espessura da carne. A performance se dá na superfície da pele. A voz está retida pelas portas de conexão cujos cabos envolvem o pescoço e instalam constrições de movimento. O dispositivo que conecta é o mesmo que depõe acerca da insuficiência no uso das redes de comunicação. O mouse se interpõe à vulva. O que se necessita não é uma nova parte do corpo, para dizer de algum modo, mas deslocar o simbólico hegemônico da diferença sexual (heterossexual) e oferecer em perspectiva crítica, esquemas imaginários alternativos que permitam constituir espaços de prazer erógeno.[7]
Como na Minoutaire de Dali,[8] o corpo trans figura-se ao desfazer os contornos nítidos entre feminino e masculino, entre humano, animal e máquina. Sonha-se a metasubcibertrans um cyborg? Mouses se interpõem aos seios e duas crianças são apoiadas em seus braços - posam para a câmera.
Atada por fios e cabos, a performer não se interliga a outro dispositivo – a sustentação dos aparatos está no corpo. Nos cabos que saem das portas analógicas não correm feixes de informação. Performance e política se entrelaçam num corpo que se situa às margens dos fluxos tecnológicos de comunicação. Sonha a metasubcibertrans com feixes de informações binárias percorrendo os cabos que a atam? Tem-se um corpo open source, aberto, instável.[9]
A criatura não agoniza, sorri fixamente – linha horizontal estirada na face. É instalada uma figuração ritual. A junção imperfeita entre corpo e aparatos delineia um gesto fágico.
Na performance Ciberpsicomagia,[10] a fita que atava a boca da criatura, desaparece. Abre-se espaço para uma fala lacônica que oscila entre a lucidez e o delírio. Códigos binários interrompem os fluxos de voz. Victoria Synclair entrevista a Metasubcibertrans que, desta feita, já não mais apresenta aparatos técnicos. Permanece a máscara na qual se entrevê apenas a boca, descargas elétricas perfazem sons codificáveis:
Miserável e divina criatura. Povo yanomami[11] me tocava muito delicadamente. Abriram minha placa mãe. Aprenderam sobre os critérios da evolução. Meu corpo era um objeto experimental. Para eles entenderem porque não acreditamos em evolução[12] (Borges, F, 2008).
Espíritos indígenas passam a povoá-la. Em performance anterior, a artista já havia invocado os índios guaranis kaiowás de Mato Grosso, que, na ausência de alternativas dignas de vida, cometem suicídio ritual. São estes índios que a abrem e perscrutam a placa mãe atada à pélvis.
O corpo híbrido se converte em objeto experimental. Com o que sonham os índios que a abrem? Tocam-na, delicadamente, num gesto desencantado – do experimento. Uma vez sonhados, os índios são incorporados ao laboratório estendido da artista – tecnomagos que atuam nas interfaces maquínicas e oníricas (Synclair, V., 2008).
A carcaça do computador se mistura ao visco dos alimentos. Obsoleta, perecível. Passamos um outro agenciamento - índios, alimentos e carcaças.[13]
A criatura agoniza. Não existem mais fios. Não existem mais cabos. Existe apenas o imperativo da conexão – fluxos maquínicos e espirituais a atravessam. Fios, cabos e vestes são expostos sem o suporte corpóreo. Opera-se a autonomização dos aparatos em relação à ordem corpórea.
Assim, como os animais mortos para abate, a metasubcibertrans tem sua pele esticada no curtume.
Malhas, Fios, cabos e fluxos são atados em alegoria. Agora retiram de mim a cobertura de carne, escorrem todo o sangue, afinam os ossos em fios luminosos e aí estou (...) parecida comigo. Um rascunho.[14]
Notas
[1] Entre os dias 07 e 11 de dezembro, em Lençóis, no interior baiano, ocorreu a terceira edição do evento Submidialogia: a arte de re:volver os logos do conhecimento pelas práticas e desorientar as práticas pela imersão no subconhecimento. Trata-se de um encontro imersivo que agregou artistas, ativistas e intelectuais. A metodologia de organização se divide em três linhas de ação: o convívio, a realização de integrações multimídia e a montagem de intervenções públicas. Na edição de 2007, diferentemente das anteriores, houve uma invasão feminina (Wells, T. 2008). É sobre uma destas performances que se debruça o presente texto.
[2] Idéia trabalhada em Deleuze e retomada por Peter Paul Pebart (2003), p. 229.
[3] Efeito semelhante de deslocamento é explorado nas performances drag king (Hanson, J., 2007)
[4] Fugido, como o fez, a criatura desenvolvida pelo Dr. Frankenstein, na novela de Mary Shelley?
[5] g2g é um grupo composto por mulheres cujo trabalho se volta para o uso de tecnologias de software livre. Referências sobre o grupo podem ser encontradas no site www.interfaceg2g.org.
[6] Sobre o questionamento do tropo ciborgue como metáfora contemporânea para a desconstrução de dicotomias, ver texto Sobre os Ciborgues como figuras de borda (Galindo, 2003).
[7] Butler, Judith (2002), p. 142.
[8] Imagem híbrida entre La Minotaure (1936) e Metasubcibertrans (2007, 2008) pode ser encontrada no site http://www.degradarte.org.
[9] As imagens divulgadas pela artista foram trabalhadas em softwares de código aberto. Para performance em vídeo, consultar: youtube.com/rss/tag/+metareciclagem.rss.
[10] Performance realizada na Casa das Bananeiras, no Rio de Janeiro, em 2008.
[11] Sobre a performance Suicídio Guarani, consultar: diplo.uol.com.br/2008-02,a2168.
[12] Depoimento em vídeo, transcrição cedida pela artista.
[13] Sobre corpos sem órgãos (Deleuze, 2002).
[14]Trecho de poema narrado pela cantora Elis Regina durante o seu último show intitulado Trem Azul.
Obras Citadas
Borges, F. Fala da Metasubcibertrans. Disponível em www.cassandras.blogspot.com. Acessado em 12/03/2008.
Butler, J. 2002. "Identificiación fantasmática y la asunción del sexo". Em: Cuerpos que importam: sobre los límites materiales y discursivos del ‘sexo’. Buenos Aires, Paidós.
Deleuze, G. 1987. "Como hacerse um cuerpos in órganos?" Em: Mil Mesetas: capitalismo y esquizofrenia. Espanha, Pré-textos.
Galindo, Dolores. 2003. "Sobre os ciborgues como figuras de borda". Athenea Digital. nº 4.
Hanson, Julie Drag Kinging. 2007 "Embodied Acts and Acts of Embodiment". Body & Society, Vol. 13, No. 1, 61–106.
Haraway, Donna. 1991. Ciência, Cyborgs y mujeres: La reinvencion de la naturaleza.Madrid, Ediciones Catedra.
Pelbart, Pelbart. 2003. "Música e Repetição". Em: Vida Capital: Ensaios de biopolítica.São Paulo, Iluminuras.
Synclair, Vitoria. Entrevista com a Metasubcibertrans. Disponível em: www.cassandras.blogspot.com. Acessado em 12/03/2008.
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