There is no translation available.

A universidade e os undercommons

Prefácio 

Undercommons no Brasil: o muro e o débito

Osmundo Pinho

 

2014 é o ano do centenário de Abdias do Nascimento e de Carolina Maria de Jesus. Com relação ao legado destes dois autores, centrais na construção de um imaginário “fugitive” para a experiência política e estética da negritude na Amerika portuguesa, permanece até o momento o mesmo silêncio de sempre na esfera pública, em seus meios intelectuais hegemônicos, na verborragia opaca da imprensa burguesa. Como me lembra meu amigo, o poeta-guerreiro Marcus Guellwaar Adún, a negritude, e os negros no Brasil, “provocam constrangimento tanto na condição de intelectuais quanto nos rolezinhos." A escritora na favela. O adolescente no Shopping Center. Medo. Silêncio. Violência. A presença fobogênica, absolutamente desejada e reprimida.

Abdias é um teórico pan-africano do quilombismo, como Beatriz Nascimento. O quilombo, um território na história e no nosso corpo. “Beneath and beyond." A narrativa da nação no Brasil é a narrativa do “settler." De sua fortificação. A guerra contra os índios. O massacre dos quilombos. Mas a nação, essa colônia, está “surrounded” por mil quilombos. Harney & Moten interpelam a imagística colonial no cinema em “Undercommons: Fugitive Planning & Black Study." Em “Shaka Zulu” (1987), o colono é cercado pelos nativos. O estereótipo é ultrajante. Mas o cerco é a nossa estratégia.“A nossa tarefa é a autodefesa do cerco, face às repetidas e direcionadas desapropriações pelas incursões armadas dos colonizadores” No Brasil do século XXI, no centenário de Abdias, as incursões armadas dos colonizadores estão longe de ser mera metáfora. Nossa “morte-em-vida” é condição de possibilidade para a branquidade na nação “mestiça."

Converso por e-mail com um aluno na Bahia. “Stefano Harney e Fred Moten. Eles falam em ‘study’ e ‘fugitive planning’. Em trabalhar junto, ‘com e para’ os subcomuns, que constroem; rupturas e planos de fuga; vivendo agora, aqui, a possibilidade de algo que está além e que não admite compromissos. A negritude, como essa recusa radical ao ‘mundo’ e à sua incompatibilidade com a branquidade. E dizem ainda que não faz sentido falar-se em reparações, porque o dano é irreparável. É preciso cancelar o débito e o sistema de crédito. E é preciso amor. Contra a ‘logisticality’ que gerencia as subjetividades e o conhecimento, tramamos nossas pequenas e dispersivas revoluções cotidianas. Nós, os “embarcados." Alienados ao nascer, estamos aqui e mais além, em nenhum outro lugar. Quilombo. Ori. Fora do espaço da História. “Terror and enjoyment," diria Saidiya Hartman. Em meio ao calor dos nossos corpos.

Na entrevista concedida a Stevphen Shukaitis, Stefano nos explica melhor: Todo mundo tinha o seu balcão e, no correio da região sul da cidade de Nova Iorque, por trás de quase todos os balcões estava uma mulher negra ou latina, que tinha decorado o seu balcão completamente para si mesma. E era cheio de coisas como pôsteres de Mumia, fotografias de crianças, fotografias de Michael Jackson, fotografias de coisas do sindicato, tudo."

A conversa continua. Sobre a vertigem da subjetividade negra, que nos aflige. “A subjetividade negra é uma encruzilhada onde vertigens se encontram, a interseção entre a violência performativa e estrutural." Como diz Wilderson, III. O fato da negritude como paroxismo vertiginoso. Autodefesa. Inclusive, ou talvez principalmente, na universidade ou nas margens interiores do estado. Reinventando práticas informais de fuga por meio do “study” e do “planning” que, eles ensinam, são “the futurial presence of the forms of life," que tornam a fuga possível.

Para Carolina Maria de Jesus, escrever, em frente ao seu barraco na favela do Canindé na manhã de 1955, era uma rota de fuga. Uma mulher negra, uma profetisa. Em meio à fome. Ao desejo. À degradação que o autodesprezo impunha aos moradores. Sempre o fato da negritude. ..". Sentei-me ao sol para escrever. A filha da Silva, uma menina de seis anos, passava e dizia: - está escrevendo, negra fedida!." O “general antagonism” e a centralidade ontológica da raça. Como em Marcus Garvey, profeta: “I see before me a new world of black men." E a instância profética dos “undercommons," que é parte da sua aventura imaginada no cotidiano, de encontrar um lugar, no coração do radicalismo político negro, como fez Garvey. Porque o profeta está na posição de ver duplamente. A brutalidade presente nas coisas como elas são, “out of joint," e dizer essas verdades brutais. Mas também de ver “the other way," o que poderia ser, o que estamos podendo ser. O antagonismo geral dos “undercommons," como em Carolina e em sua negritude. O lugar de uma absoluta “nothingness," de uma vertigem onde o mundo das coisas converge, ou desaba, na escuridão. “Blackness is fantasy in the hold."

Madame Satã, antes de tornar-se personagem do novo cinema brasileiro, foi uma figura real na Lapa, centro boêmio da prostituição e do samba, no Rio de Janeiro dos anos 20 e 30. Satã cumpriu 27 anos de prisão por matar um policial em 1928. Homossexual, era negro e analfabeto. Em 1971, deu uma entrevista a jornalistas do “Pasquim," jornal “marginal” da oposição de classe média à ditadura militar. Madame Satã conhece o “porão” melhor do que ninguém, é a rainha dos “embarcados." Estava à vontade no prostíbulo, nos bares, na favela. Não tinha medo de ninguém e tinha fama de valentão. Os jornalistas lhe perguntam: “Você tem consciência que é uma figura mitológica no Rio de Janeiro? – É o que diz a sociedade, não é? Só que eu sou antissocial." Na Lapa e na cadeia, conheceu políticos, artistas, bandidos famosos. O jovem amigo do chefe da guarda do Presidente Getúlio Vargas, preso sob acusação de assassinato no Presídio da Ilha Grande, clama por socorro. “Então o rapazinho escreveu para o Gregório, pedindo que mandassem buscá-lo, porque estava sendo martirizado, porque o Feliciano vendia o garoto uma noite para um, outra noite para outro." Satã conheceu o “porão” como ninguém. A modernidade da experiência da negritude no Brasil, no centro urbano e na cadeia. Um movimento logístico, que encontra resistência, ruptura entre os “shipped." A negritude como um “instrument in the making." E a “logisticality” que não encontra coerência, que é dilacerante como a desorientação queer, como a capoeira. Harney & Moten citam Wilderson, III para lembrar como é estar no porão e fantasiar o voo alto. Como a “Dama de Vermelho," que Satã encarnou em seu último carnaval, em 1941.

A fungibilidade do “embarcado” e o espetáculo aterrorizante do prazer. Cenas de subjugação, na escravidão e no teatro da negritude, na sociedade do espetáculo. Onde, se não no Brasil, o terror racial, o corpo negro desmembrado e a erótica do poder encontrariam palco tão perfeito? Como em outros quadrantes. O poeta romântico brasileiro Antônio Castro Alves – cuja identidade racial é pomo da discórdia na historiografia da literatura brasileira – deu forma poética ao espetáculo de “terror and enjoyment” na passagem-do-meio, no poema-catedral do abolicionismo brasileiro, o “Navio Negreiro:"

Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri!

No porão. No navio negreiro. Na prisão. Sonhando a profecia fantástica da negritude. O sexo e o desejo são o pesadelo da raça no Brasil. Tatuagem fluorescente escrita a sangue em nosso corpo. Prazer total, terror extremo, nas margens tropicais do Atlântico Sul.

Em uma região de Salvador da Bahia, conhecida como Cidade Baixa, há uma aprazível vizinhança à beira-mar, cercada por comunidades pobres; é a praia da Ribeira. Jovens das redondezas reúnem-se nas noites de domingo para dançar no meio da rua ao som do gênero musical mais popular e odiado da cidade. O pagode. A música do gueto e da favela. E também da licenciosidade desbragada. Ultrajante. Meus colegas na universidade odeiam o pagode. Feministas aprovaram uma lei estadual que visa limitar o seu alcance. Para a polícia, os jovens pagodeiros da Ribeira são bandidos. A festa é “fugitiva” e ocorre de improviso nas ruas. O som dos carros em alto volume. Adolescentes de ambos os sexos remexem todo o corpo freneticamente. A rua está lotada. A música é muitas vezes sensual, alguns dizem pornográfica. Mas também é a indiscutível “voz do gueto," que exalta a identidade da favela, denuncia a violência policial e o preconceito. “Vai começar o tiroteio, vai começar. Clack, Clack. Bum. Clack, Clack, Bum." Berra, no alto-falante, o cantor Ed City. Em intervalos regulares, o carro da polícia dobra silenciosamente a esquina e atravessa a multidão, repentinamente imobilizada. A música cessa. Ninguém mais dança. Até que o carro dobra a esquina novamente e tudo recomeça. Seguimos fantasiando no porão. Juntos, “com e para” os “undercommons."

Jack Halberstam nos ajuda a entender “Os subcomuns/“undercommons” constituem um espaço e tempo que já está aqui." E como lugar de crítica descolonial, vernácula, não é um retorno fundacional, ou nostalgia, mas um além, que já está aqui. Entre nós. “I see a new world of black men." Alguns enxergam a brecha que o pagode significa. Um lapso, uma ruptura semiótica, descolonial e selvagem. Assédio ao “settled” em Salvador, à fortaleza colonial e ao porto de escravos do século XVI. O grupo envolvido no projeto BrauNation reinterpreta e reinscreve o pagode como leitura afrofuturista da cultura negra popular e vernácula. (

). “Brau” é o termo derivado de (James) Brown, em que jovens negros da favela encontram um ponto de apoio, ou um plano de fuga descolonizante em Salvador. BrauNation, “Derrubando os muros da Cidade," é uma maneira de “being with each other” que requer e põe em prática “elaboration," “improvisation," “rehearsal." Em uma palavra: “study."

Eu sou professor em uma universidade pública, localizada em uma cidade periférica e majoritariamente negra, de uma região periférica e majoritariamente negra: o Nordeste do Brasil. A região e a cidade foram o palco originário do estabelecimento colonial na Amerika portuguesa. Minha universidade adota políticas afirmativas raciais para o ingresso de estudantes desde a sua fundação, há sete anos atrás. Não vejo nisso reparação. O projeto do radicalismo negro não tem nada a ver com reparação, mas “is about a complete overturning." A superação radical de que falam os autores e a transcendência de todo o sistema de débito e crédito, “abolition of accounting." Porque como poderia ser pago por tudo o que foi roubado e como poderíamos pagar, apagar em nós mesmos, o débito?

Como diz um grafite, misteriosamente surgido nos muros da universidade onde trabalho: “Vocês nos devem até a alma."

Austin, Babilônia, fevereiro de 2014.


A filosofia, portanto, tradicionalmente pratica uma crítica do conhecimento que é simultaneamente uma negação do conhecimento (por exemplo, das lutas de classe). Sua posição pode ser descrita como uma ironia em relação ao conhecimento, o qual ela questiona sem nunca tocar suas fundações. O questionamento do conhecimento na filosofia sempre termina na sua restauração: um movimento que grandes filósofos consistentemente apontam uns nos outros.

Jacques Rancière, On the Theory of Ideology – Althusser’s Politics

Número um, eu sou um homem negro, porque sou contra o que eles fizeram e ainda estão fazendo conosco; e número dois, eu tenho algo a dizer sobre a nova sociedade a ser construída, porque eu sou parte importante daquilo que eles têm buscado desacreditar.

C. L. R. James, C. L. R. James: His Life and Work

A única relação possível com a universidade hoje é criminal

“Para ir à universidade eu roubarei, e lá eu roubarei," para tomar emprestado o texto de Pistol, no final de Henrique V, como ele certamente tomaria emprestado de nós. Esta é a única relação possível com a universidade americana hoje. Pode ser verdade para as universidades em toda parte. Talvez tenha que ser verdade para a universidade em geral. Mas, certamente, isto é certo ao menos nos Estados Unidos: não se pode negar que a universidade é um lugar de refúgio e não se pode aceitar que a universidade seja um lugar de esclarecimento. Diante dessas condições, só se pode entrar furtivamente na universidade e roubar o que for possível. Abusar da sua hospitalidade, maldizer sua missão, juntar-se às suas colônias de refugiados, ao seu acampamento cigano, estar dentro, mas não ser dela – este é o caminho do intelectual subversivo na universidade moderna.

Preocupe-se com a universidade. Este é o comando hoje nos Estados Unidos, que tem uma longa história. Clame pela sua restauração, como Harold Bloom, ou Stanley Fish, ou Gerald Graff. Clame pela sua reforma, como Derek Bok, ou Bill Readings, ou Cary Nelson. Chame por ela como ela chama por você. Mas, para o intelectual subversivo, tudo isso ocorre no andar de cima, com companhias educadas, entre os homens racionais. Afinal de contas, o intelectual subversivo veio sob falsos pretextos, com documentos ruins, por amor. O seu trabalho é tão necessário quanto é mal recebido. A universidade precisa do que sustenta, mas não pode sustentar o que ela traz. E, acima de tudo isso, ela desaparece. Desaparece na clandestinidade, na comunidade underground de fugitivos da universidade, até chegar aos undercommons of enlightenment, onde o trabalho é subvertido, onde a revolução ainda é negra, ainda é forte.

Qual é esse trabalho e qual é a sua capacidade social, tanto para reproduzir a universidade como para produzir a fuga? Se alguém dissesse lecionar, estaria desenvolvendo o trabalho da universidade. Lecionar é meramente uma profissão e uma operação daquele círculo onto/auto-enciclopédico do estado que Jacques Derrida chama de Universitas. Mas vale à pena evocar esta operação, para espiar pelo buraco na cerca onde o trabalho entra, para espiar a sua sala de contratações, os seus alojamentos noturnos. A universidade precisa de força de trabalho de ensino, apesar de si mesma, ou como ela mesma, auto-idêntica com e, portanto, apagado por ela. Não é lecionar que mantém essa capacidade social, mas algo que produz outro lado não visível do lecionar, um pensamento que passa pelo cerne do ensino, rumo a uma orientação coletiva para o objeto do conhecimento como um projeto futuro e um compromisso com o que nós queremos chamar de organização profética. Mas é o lecionar que nos conduz a isso. Antes de existirem os financiamentos, a pesquisa, as conferências, os livros e periódicos, havia a experiência de ser ensinado e de ensinar. Antes do posto de pesquisa sem a docência, antes dos alunos de pós-graduação para corrigir os exames, antes da série de sabáticos, antes da redução permanente da carga de ensino, a indicação para coordenar um centro, a transferência da pedagogia para uma disciplina chamada educação, antes do curso concebido para ser um novo livro, o lecionar acontecia.

O momento de lecionar para a subsistência é com frequência erroneamente considerado um estágio, como se eventualmente não se devesse dar aulas para viver. Se esse estágio persiste, há uma patologia social na universidade. Mas se o ensino é passado adiante de forma bem sucedida, esse estágio fica superado e o lecionar é transferido àqueles que sabemos que vão permanecer nesse estágio, a força de trabalho sócio-patológica da universidade. Kant interessantemente chama esse estágio de “minoria auto-incorrida." Ele tenta contrastar isso com ter “a determinação e a coragem de usar sua inteligência sem ser guiado por outra pessoa." “Ter a coragem de usar sua própria inteligência." Mas o que significaria se lecionar, ou melhor, aquilo que poderíamos chamar de “ir além de lecionar” fosse precisamente aquilo que se pede que alguém vá além, que deixe de ser um sustento? E o que seria daquelas minorias que se recusam, a tribo dos infiltrados que se negam a voltar do além (aquele que está além do “além de lecionar”), como se eles não fossem sujeitos, como se eles quisessem pensar como objetos, como minoria? Certamente, os sujeitos perfeitos da comunicação, aqueles bem sucedidos no além de lecionar, os considerarão um desperdício. Mas o trabalho coletivo deles vai sempre gerar o questionamento sobre quem está verdadeiramente seguindo as ordens do esclarecimento. As vidas desperdiçadas por aqueles momentos que vão além de lecionar, quando você fala a frase inesperada e linda – inesperada, ninguém perguntou; linda, nunca mais vai voltar. Será que ser o biopoder do esclarecimento é verdadeiramente melhor que isso?

Talvez o biopoder do esclarecimento saiba disso, ou talvez esteja apenas reagindo à condição de objeto desse trabalho, como deve ser. Mas apesar de depender desses infiltrados, desses refugiados, ele vai chamá-los de não acadêmicos, não práticos, ingênuos, não profissionais. E ainda pode-se dar uma última chance de ser pragmático – por que roubar se pode-se ter tudo, eles perguntarão. Mas se alguém se esquiva dessa interpelação, não concorda nem discorda, mas vai de cabeça aos submundos da universidade, para os undercommons – isso será considerado um roubo, um ato criminal. E essa é, ao mesmo tempo, a única ação possível.

Nos undercommons da universidade, pode-se ver que não é uma questão de lecionar versus pesquisar, ou mesmo ir além de lecionar versus a individualização da pesquisa. Entrar nesse espaço é habitar a revelação rompida e arrebatada dos comuns que o esclarecimento fugidio encena, criminosa, matricida, queer, na cisterna, na crista da vida roubada, a vida roubada pelo esclarecimento e depois roubada de volta, onde os comuns oferecem refúgio, onde o refúgio alcança os comuns. O ir além de lecionar trata-se, na verdade, de não se autoterminar, não passar, não completar; de permitir que a subjetividade seja ilegalmente dominada por outros, uma paixão radical e uma passividade tal que faz com que a pessoa torne-se imprópria para a subjugação, porque não possui o tipo de apoio que possa manter as forças regulamentares da subjetividade, e não se pode iniciar o torque autointerpelativo que a subjugação ao biopoder requer e premia. Não é tanto o lecionar quanto o ato de profetizar na organização sobre o ato de lecionar. A profecia que prediz a sua própria organização e que por isso passou, como os comuns, e a profecia que excede a sua própria organização e que, portanto, até o momento só pode ser organizada. Contra a organização profética dos undercommons está empenhado o seu próprio trabalho sufocante para a universidade e, além disso, a negligência da profissionalização e a profissionalização do acadêmico crítico. Os undercommons formam, portanto, uma vizinhança sempre insegura.

Como nos lembra Fredric Jameson, a universidade depende da “crítica do tipo esclarecedor e das desmistificações das crenças e das ideologias comprometidas, a fim de limpar o terreno para um planejamento desobstruído e para o ‘desenvolvimento’." Essa é a fraqueza da universidade, o lapso na sua segurança interna. Ela precisa do poder do trabalho para alcançar essa “crítica do tipo esclarecedor," mas de alguma forma o trabalho sempre escapa.

Os sujeitos prematuros dos undercommons levaram o chamado a sério, ou tiveram que ser sérios em relação ao chamado. Eles não eram claros quanto ao planejamento, muito místicos, muito cheios de crenças. E mesmo assim essa força de trabalho não pode se reproduzir a si mesma, ela precisa ser reproduzida. A universidade trabalha para chegar ao dia em que ela vai poder livrar-se, como o capital em geral, do problema do trabalho. Ela então será capaz de reproduzir a força de trabalho que se entende não só como desnecessária, mas perigosa ao desenvolvimento do capitalismo. Muita pedagogia e estudos já são voltados para essa direção. Os estudantes devem chegar a ver a si próprios como o problema – o que, ao contrário das reclamações das críticas restauracionistas da universidade, é precisamente o que significa ser um cliente, assumir o ônus da realização e, necessariamente, ser sempre inadequado a ela. Mais tarde, esses estudantes poderão ver a si mesmos adequadamente como obstáculos para a sociedade ou, talvez, com o aprendizado de uma vida, os estudantes já tenham obtido sucesso em autodiagnosticar-se como sendo o problema.

Ainda assim, o sonho de um trabalho não diferenciado que se sabe supérfluo é interrompido precisamente pelo trabalho de remover as barreiras abrasadoras da ideologia. Apesar de ser melhor que essa função policiadora esteja nas mãos de poucos, ela ainda trata o trabalho como diferença, trabalho como o desenvolvimento de outro trabalho e, portanto, trabalho como uma fonte de riqueza. Apesar de a crítica do tipo esclarecedor, como sugerimos abaixo, informar, bajular, dar beijinhos em qualquer desenvolvimento autônomo como resultado dessa diferença de trabalho, há um buraco na parede aqui, um lugar raso no rio ali, um lugar para pousar sob as pedras acolá. A universidade ainda precisa desse trabalho clandestino para preparar essa força não diferenciada de trabalho, cuja especialização crescente e tendências administrativas, mais uma vez contra os restauracionistas, representam precisamente a integração bem-sucedida da divisão do trabalho com o universo de troca que comanda a lealdade restauracionista.

Introduzir esse trabalho sobre o trabalho, e prover o espaço para o seu desenvolvimento, gera riscos. Como a força policial colonial involuntariamente recrutada das vizinhanças guerrilheiras, o trabalho universitário pode abrigar refugiados, fugitivos, renegados e náufragos. Mas há boas razões para a universidade estar confiante de que tais elementos serão expostos ou forçados à clandestinidade. Precauções foram tomadas, listas de livros foram elaboradas, observações pedagógicas foram conduzidas, convites para contribuições foram feitos. No entanto, contra essas precauções ergue-se a imanência de transcendência, o desregramento necessário e as possibilidades de criminalidade e de fuga que o trabalho sobre o trabalho requer. Comunidades de fugitivos, de professores de composição, estudantes de pós-graduação sem mentores, historiadores marxistas adjuntos, professores de administração saídos do armário ou queer, departamentos de estudos étnicos nas faculdades estaduais, programas de cinema encerrados, estudantes do Iêmen, com vistos vencidos, atuando como editores de jornal, sociólogos de faculdades e engenheiros feministas historicamente negros. E o que dirá a universidade deles? Dirá que eles não são profissionais. Isso não é um ataque arbitrário. É um ataque contra os mais que profissionais. Como é que aqueles que excedem a profissão, que excedem e que por excederem escapam, como esses fugitivos se problematizam, problematizam a universidade, forçam a universidade a considerá-los um problema, um perigo? Os undercommons não são, em resumo, o tipo de comunidade extravagante e fantasiosa invocada por Bill Readings ao final do seu livro. Os undercommons, seus fugitivos, estão sempre em guerra, sempre escondidos.

Não há distinção entre a universidade americana e a profissionalização

Mas seguramente, se alguém pode escrever algo sobre a superfície da universidade; se alguém pode escrever, por exemplo, na universidade sobre singularidades – aqueles eventos que recusam tanto a categoria abstrata quanto individual da temática burguesa – então não se pode dizer que não há espaço na própria universidade? Seguramente há algum espaço aqui para uma teoria, uma conferência, um livro, uma escola de pensamento? Certamente a universidade também torna o pensamento possível? O propósito da universidade, como Universitas, como artes liberais, não é fazer dos comuns, fazer do público, fazer da nação uma cidadania democrática? Não é então importante proteger essa Universitas, apesar de suas impurezas, da profissionalização na universidade? Mas nós perguntaríamos o que já não é mais possível nesta conversa nos corredores, entre os edifícios, em salas da universidade, sobre possibilidades? Como é que o pensamento do exterior, como Gayatri Spivak define, já não é mais possível nessa reclamação?

Os fugitivos sabem alguma coisa sobre possibilidades. Eles são a condição de possibilidade da produção de conhecimento na universidade – as singularidades contra os escritores de singularidades, os escritores que escrevem, publicam, viajam e falam. Não é apenas uma questão do trabalho secreto sobre o qual esse espaço surge, apesar de que, logicamente, esse espaço surge e é sustentado a partir do e pelo trabalho coletivo. Ou melhor, ser um acadêmico crítico na universidade é estar contra a universidade; e estar contra a universidade sempre é reconhecê-la e ser reconhecido por ela, e institucionalizar a negligência daquele exterior internalizado, daquela clandestinidade não assimilada, e instituir uma negligência disto que é precisamente, temos que insistir, a base das profissões. E este ato de estar sempre contra já exclui os modos não reconhecidos de política, o além da política já em andamento, a para-organização criminal desacreditada, a que Robin Kelley poderia referir-se como campo infrapolítico (e sua música). Não é só o trabalho dos fugitivos, mas a sua organização profética que é negada pela ideia do espaço intelectualizado em uma organização chamada universidade. É por isso que a negligência do acadêmico crítico é sempre, ao mesmo tempo, uma afirmação do individualismo burguês.

Tal negligência é a essência da profissionalização, onde afinal de contas a profissionalização não é o oposto de negligência, mas seu modo de política nos Estados Unidos. Ela assume a forma de uma escolha que exclui a organização profética dos undercommons – ser contra, questionar o objeto do conhecimento, digamos neste caso a universidade, não tanto sem tocar sua fundação, mas sem tocar a própria condição de possibilidade de alguém, sem admitir os undercommons ou ser admitido neles. A partir disto, uma negligência geral de condição é a única posição coerente. Não tanto um antifundacionalismo ou fundacionalismo, já que ambos são usados um contra o outro para evitar contato com os undercommons. Este ato, sempre negligente, é o que nos leva a dizer que não há qualquer distinção entre a universidade nos Estados Unidos e a profissionalização. Não faz sentido tentar culpar a universidade pela sua profissionalização. Elas são a mesma coisa. Ainda assim, os fugitivos recusam-se a recusar a profissionalização, quer dizer, a ser contra a universidade. A universidade não reconhecerá esta indecisão e, portanto, a profissionalização é moldada precisamente pelo que não se pode reconhecer, seu antagonismo interno, seu trabalho voluntarioso, seu excesso. Contra esse trabalho voluntarioso manda o crítico, manda sua reivindicação de que o que sobra além do crítico é desperdício.

Mas, na verdade, a educação crítica somente tenta aperfeiçoar a educação profissional. As profissões se constituem em oposição ao que não está regulamentado e ao ignorante, sem reconhecer o trabalho não regulamentado, ignorante, não profissional que é feito – não em oposição a eles, mas dentro deles. Mas se a educação profissional alguma vez desliza em seu trabalho, alguma vez revela sua condição de possibilidade às profissões que apoia e reconstitui, a educação crítica está lá para apoiá-la e para dizer-lhe não esquenta: foi só um sonho ruim, os delírios, os desenhos de um louco. Porque a educação crítica existe precisamente para dizer à educação profissional que repense sua relação com o seu oposto – pelo qual educação crítica significa tanto ela mesma quanto a não regulamentada, contra a qual a educação profissional é empregada. Em outras palavras, a educação crítica chega para apoiar qualquer negligência vacilante, para ser vigilante na sua negligência, para estar criticamente engajada na sua negligência. É mais que um aliado da educação profissional, é uma tentativa de concluí-la.

Uma educação profissional tornou-se uma educação crítica. Mas não se deveria aplaudir este fato. Deveria ser aceito pelo que é, não progredir nas escolas profissionais, não coabitar com a Universitas, mas ser contra-insurgente, refundar o terrorismo da lei, acolhendo os que estão desacreditados, acolhendo aqueles que se recusam a descartar ou a levar em conta os undercommons.

A Universitas sempre é uma estratégia de estado/Estado. Talvez seja surpreendente dizer que profissionalização – aquilo que reproduz as profissões – seja uma estratégia estatal. Certamente, profissionais acadêmicos críticos tendem a ser considerados hoje como intelectuais inofensivos, maleáveis, talvez capazes de alguma intervenção modesta na chamada esfera pública. Mas para ver como isto subestima a presença do estado, podemos voltar-nos para uma má leitura da consideração de Derrida sobre o Relatório de Hegel de 1822 ao ministro da educação prussiano. Derrida nota o modo como Hegel rivaliza com o estado na sua ambição pela educação, querendo pôr em prática uma pedagogia progressiva de filosofia projetada para apoiar a forma de ver o mundo de Hegel, enciclopédica. Esta ambição tanto reflete a ambição do estado, porque ele também quer controlar a educação e impor uma forma de ver o mundo, como o ameaça, porque o Estado de Hegel excede e assim localiza o estado prussiano, expondo sua pretensão de ser enciclopédico. Derrida tira a seguinte lição da sua leitura: a Universitas, como ele generaliza a universidade (mas também a especifica como devidamente intelectual e não profissional), sempre tem o impulso de Estado, ou do esclarecimento, e o impulso de estado, ou suas condições específicas de produção e reprodução. Ambos têm a ambição de ser, como diz Derrida, onto e auto-enciclopédico. Segue daí que ser contra ou a favor da Universitas apresenta problemas. Ser a favor da Universitas é apoiar esse projeto onto e auto-enciclopédico do Estado como esclarecimento, ou o esclarecimento como totalidade, para usar uma palavra antiquada. Ser demasiadamente contra a Universitas, porém, cria o perigo de que elementos específicos do estado tomem medidas para livrar-se da contradição do projeto onto e auto-enciclopédico da Universitas e substituí-lo por alguma outra forma de reprodução social, o anti-esclarecimento – a posição, por exemplo, do New Labour na Inglaterra e dos estados de Nova Iorque e Califórnia, com as suas “instituições pedagógicas." Mas uma má leitura de Derrida também vai provocar novamente a nossa pergunta: o que é que se perde com essa indecisão? Qual é o preço que se paga por recusar-se a ser tanto pró-Universitas quanto pela profissionalização, por ser crítico de ambos; e quem paga esse preço? Quem torna possível alcançar a aporia dessa leitura? Quem trabalha no excesso prematuro da totalidade, no não não-pronto da negligência?

O meio de profissionalização que é a universidade americana dedica-se precisamente à promoção dessa escolha consensual: uma crítica anti-fundacional da universidade ou uma crítica fundacional da universidade. Consideradas como escolhas, ou restritas a apostas, uma coisa misturada com a outra, elas são, no entanto, sempre negligentes. A profissionalização é construída com base nessa escolha. Atinge a ética e a eficiência, a responsabilidade e a ciência, e diversas outras escolhas, todas construídas sobre o roubo, a conquista, a negligência da intelectualidade de massa marginal dos undercommons.

É, portanto, insensato pensar na profissionalização como um estreitamento e é melhor pensar nisso como um círculo, um círculo de vagões de guerra em torno do último acampamento de mulheres e crianças indígenas. Pense no modo como o médico ou o advogado americano consideram-se educados, fechados no círculo da enciclopédia estatal, apesar de talvez não conhecerem nada de filosofia ou história. O que estaria fora desse ato do círculo de conquista, que tipo de mundo fantasmagoricamente trabalhado escapa desse ato circular, um ato que é como um tipo de fenomenologia partida, onde os resultados nunca saem e o que é experimentado como conhecimento é o horizonte absoluto do conhecimento, cujo nome é banido pelo banimento do absoluto. Simplesmente é um horizonte que não se esforça em tornar-se possível. Não surpreende que, independentemente de suas origens ou possibilidades, são as teorias do pragmatismo nos Estados Unidos e o realismo crítico na Inglaterra que comandam a lealdade dos intelectuais críticos. Nunca tendo que confrontar a fundação, nunca tendo que confrontar a antifundação, pela fé na fundação inconfrontável, os intelectuais críticos podem flutuar na gama mediana. Essas lealdades banem dialéticas, com o seu interesse inconveniente em promover o material e o abstrato, a mesa e seu cérebro, até onde podem, um comportamento que não poderia ser mais obviamente não profissional.

A profissionalização é a privatização do indivíduo social através da negligência

Seguramente a profissionalização traz com ela os benefícios da competência. O círculo onto/auto-enciclopédico da universidade pode ser uma particularidade do estado americano, mas não seria possível recuperar algo desse conhecimento para avanços práticos? Ou, de fato, não seria possível embarcar em projetos críticos dentro desse campo, projetos que direcionariam suas competências para fins mais radicais? Não, nós diríamos, não seria. E, ao dizer isso, nos preparamos para afastar-nos dos acadêmicos críticos americanos, para nos tornarmos não confiáveis, sermos desleais para com a esfera pública, sermos obstrutivos e indolentes, tolos insolentes em face ao convite ao pensamento crítico.

Vamos, por exemplo, agir de forma desleal no campo da administração pública e especialmente nos programas de mestrado em administração pública, incluindo programas correlatos em saúde pública, administração ambiental, administração de artes e sem fins lucrativos e a grande seleção de cursos, certificados, diplomas e graduações em serviços humanos, que sustentam esse agrupamento disciplinar. É difícil não perceber que esses programas existem contra eles mesmos, que eles se menosprezam. (Embora posteriormente seja possível ver isso em toda a profissionalização, é a negligência subjacente que instabiliza a superfície do poder do trabalho.) Uma conferência comum, na Escola de Serviço Público Robert F. Wagner, da NYU, por exemplo, pode ser mais antiestatal, mais cética no governo, mais modesta em suas metas de políticas sociais do que uma conferência comum nos departamentos declaradamente neoclássicos de economia ou de ciências políticas da nova direita da mesma universidade. Não seria muito diferente na Syracuse University ou em uma dúzia de outras escolas de administração pública proeminentes. Pode-se dizer que o ceticismo é uma parte importante do ensino superior, mas este ceticismo em particular não está baseado em estudos aprofundados do objeto em questão. Na verdade, não há qualquer teoria estatal nos programas de administração pública nos Estados Unidos. Ao invés disso, o estado é considerado como o proverbial diabo que conhecemos. E se ele é compreendido na administração pública como um mal necessário, ou como um bem que tem utilidade e disponibilidade limitadas, é sempre completamente reconhecível como um objeto. Então não é tanto que esses programas sejam posicionados contra eles mesmos. Na realidade, eles se posicionam contra alguns alunos, e particularmente contra aqueles que vêm para a administração pública com um sentimento que Derrida chama de dever além do dever, ou uma paixão.

Ser cético sobre o que alguém já sabe é claramente uma posição absurda. Se a pessoa é cética em relação a um objeto, então ela já está em posição de não conhecer aquele objeto; e se a pessoa alega conhecer o objeto, ela não pode também alegar ser cética em relação àquele objeto, o que equivaleria a ser cética em relação à própria alegação da pessoa. Mas esta é a posição da profissionalização, e é esta a posição que confronta aquele estudante, ainda que raro, que vem para a administração pública com uma paixão. Qualquer tentativa passional, de pisar fora desse ceticismo do conhecido rumo a um confronto inadequado com o que excede o ceticismo e consigo mesmo, deve ser suprimido por essa profissionalização. Não é somente uma questão de administrar o mundo, mas de administrar o mundo para fora (e, com isso, as profecias). Qualquer outra disposição é não apenas não profissional, mas incompetente, antiética e irresponsável, beirando a criminalidade. Novamente, a disciplina da administração pública é particularmente, apesar de não unicamente, instrutiva, tanto na sua pedagogia quanto no seu academicismo, e oferece a chance de ser desleal, de esmagar e agarrar o que nela se encerra.

A administração pública prende-se à ideia, tanto nas salas de conferências como nos periódicos profissionais, de que suas categorias são reconhecíveis. O estado, a economia e a sociedade civil podem mudar de tamanho ou formato, o trabalho pode entrar ou sair e a consideração ética pode variar, mas esses objetos são tanto positivistas quanto normativos, permanecendo em arranjo discreto e espacial um para com o outro. A profissionalização começa por aceitar essas categorias, precisamente para que a competência possa ser invocada, uma competência que, ao mesmo tempo, vigia a sua própria fundação (como Michael Dukakis dando voltas em um tanque, fantasmagoricamente patrulhando o seu bairro vazio). Essa responsabilidade pela preservação de objetos torna-se precisamente aquela ética de locais específicos proposta por Weber, que tem o efeito, como reconheceu Theodor Adorno, de naturalizar a produção de locais capitalistas. Questioná-los torna-se então não somente uma atitude incompetente e antiética, mas constitui uma falha de segurança.

Por exemplo, se alguém quisesse explorar a possibilidade de que a administração pública poderia ser mais bem definida como o trabalho da privatização inexorável da sociedade capitalista, essa pessoa poderia receber vários pontos de vista não profissionais. Isso ajudaria a explicar a inadequação das três principais estirpes nos estudos de administração pública nos Estados Unidos. A estirpe da ethos pública, representada por projetos como a reformulação da administração pública e o periódico Administration and Society; a estirpe da competência pública, representada no debate entre a administração pública e a nova administração pública e pelo periódico Public Administration Review; e a estirpe crítica, representada pela PAT-Net, pela Public Administration Theory Network e por seu periódico Administrative Theory & Praxis. Se a administração pública é a competência para confrontar a socialização continuamente criada pelo capitalismo e pegar o máximo possível dessa socialização e reduzí-la a algo chamado de público ou a algo chamado de privado, então imediatamente todas as três posições tornam-se inválidas. Não é possível falar-se em um trabalho que é dedicado à reprodução da desapropriação social como tendo uma dimensão ética. Não é possível determinar a eficiência ou extensão de tal trabalho após o seu desgaste nessa operação, olhando-se para ele depois que ele reproduziu algo chamado de público ou algo chamado de privado. E não é possível ser crítico e ao mesmo tempo aceitar sem críticas a fundação do pensamento da administração pública nessas esferas do público e do privado, e negar o trabalho que está por trás dessas categorias, nos undercommons, por exemplo, da república de mulheres que administra o Brooklyn.

Mas este é um exemplo não profissional. Preserva as regras e respeita os termos do debate, entra no discurso da comunidade, pois conhece e reside nos seus (inacessíveis) objetos de fundação. Também é um exemplo incompetente. Não se permite medir, aplicar e melhorar, exceto permanecer querendo. E é um exemplo antiético. Sugerir o domínio absoluto de uma categoria sobre a outra – isso não é fascismo ou comunismo? Finalmente, é um exemplo passional, cheio de profecias e não de provas, um mau exemplo de um argumento fraco, que não faz qualquer tentativa de defender-se, entregue a algum tipo de sacrifício da comunidade profissional que emana dos undercommons. Esta é a opinião negligente dos profissionais acadêmicos da administração pública.

O que mais é então a conexão entre essa profissionalização como a onto/auto-enciclopédia do estado americano e a expansão da profissionalização além da universidade, ou talvez a expansão da universidade para além da universidade, e as colônias dos undercommons? Uma certa revolta na qual a profissionalização tropeça – quando o cuidado com o social é confrontado com sua reação, uma negligência forçada – uma revolta irrompe e o profissional parece absurdo, como uma seção de recrutamento no meio de um carnaval, serviços profissionais, serviços profissionais pessoais, tornar-se profissional para pagar a universidade. É nesse momento de revolta que a profissionalização mostra o seu negócio desesperado, nada menos do que converter o indivíduo social. Com exceção, talvez, de uma coisa mais, o objetivo final de uma contra-rebelião em todas as partes: transformar os insurgentes em agentes estatais.

Os acadêmicos críticos são os profissionais par excellence

O acadêmico crítico questiona a universidade, questiona o estado, questiona a arte, a política, a cultura. Mas nos undercommons é assim: “sem perguntas." É incondicional – as portas se abrem para refugiar mesmo quando pode ser que entre algum agente policial ou a destruição. As perguntas são supérfluas nos undercommons. Se você não sabe, por que perguntar? A única pergunta que fica na superfície é o que pode significar ser crítico quando o profissional se define como alguém que é crítico da negligência, enquanto a negligência define a profissionalização? Isso não significaria que ser crítico da universidade faria de alguém o profissional par excellence, mais negligente que qualquer outro? Distanciar-se profissionalmente através da crítica; não é esse o consentimento mais ativo para a privatização do indivíduo social? Os undercommons podem, ao contrário, ser entendidos como cautelosos com relação à crítica, cansados dela e, ao mesmo tempo, dedicados à coletividade do seu futuro, à coletividade que pode vir a ser o seu futuro. Os undercommons, de certa forma, tentam escapar à crítica e da sua degradação como consciência universitária e autoconsciência sobre a consciência universitária, retirando-se, como diz Adrian Piper, para o mundo externo.

Esta comunidade de fugitivos, se ela existe, então também busca escapar ao decreto do fim dos homens. O exército soberano do anti-humanismo acadêmico vai perseguir essa comunidade negativa nos undercommons, buscando recrutá-la, precisando recrutá-la. No entanto, por mais sedutora que seja essa crítica, por mais provocada que seja, nos undercommons eles sabem que não é amor. Entre o decreto do fim e a ética do recomeço, os undercommons aguardam – e alguns encontram conforto nisso. Conforto para os emigrantes da conscrição, não para estar prontos para a humanidade e quem tiver que, de qualquer modo, suportar o retorno da humanidade, como pode ser suportado por aqueles que vão ou têm que suportar isso, como certamente aqueles dos undercommons suportam, sempre no limite, sempre o suplemento do intelecto geral e da sua fonte. Quando o acadêmico crítico que vive por decreto (dos outros) não consegue nenhuma resposta, nenhum comprometimento dos undercommons, então certamente a conclusão virá: eles não são práticos, não são sérios em relação à mudança, não são rigorosos, não são produtivos.

Enquanto isso, aquele acadêmico crítico na universidade, no círculo do estado americano, questiona a universidade. Ele alega ser crítico da negligência da universidade. Mas não é ele o profissional mais bem-sucedido na sua negligência estudada? Se o trabalho sobre o trabalho, o trabalho entre o trabalho dos não profissionais na universidade causa revolta, retração, liberação, o trabalho do acadêmico crítico não envolve um escárnio desse primeiro trabalho, um desempenho que está finalmente na sua falta de preocupação pelo que parodia, negligente? O questionamento do acadêmico crítico não se torna uma pacificação? Ou, para expor claramente, o acadêmico crítico não ensina como negar precisamente o que uma pessoa produz com outros, e esta não é a lição que as profissões retornam para a universidade para aprender mais e mais uma vez? Então o acadêmico crítico não se dedica ao que Michael E. Brown classificou como empobrecimento, miserabilidade dos prospectos cooperativos da sociedade? Este é o plano de ação profissional. Esta charada do tipo esclaredor é totalmente negligente em sua crítica, uma negligência que nega a possibilidade de um pensamento sobre um exterior, um não-lugar chamado de undercommons – o não-lugar que deve ser pensado fora para ser sentido dentro, do qual a charada do tipo escarecedor roubou tudo para usar em seu jogo.

Mas se o acadêmico crítico é apenas um profissional, por que gastar tanto tempo com ele? Por que não simplesmente roubar seus livros uma certa manhã e doá-los a estudantes não inscritos em um boteco meio caído e com cheiro de cerveja, onde o seminário sobre os esconderijos e os empréstimos acontecem? Ainda assim, devemos falar sobre esses acadêmicos críticos porque a negligência, afinal, é um grande crime de estado.

O encarceramento é a privatização do indivíduo social através da guerra

Se fosse para insistir, o oposto de profissionalização seria aquele impulso fugidio de confiar nos undercommons para proteção, de confiar na honra e de insistir na honra da comunidade fugidia; se fosse para insistir, o oposto de profissionalização seria aquele impulso criminoso de roubar das profissões, da universidade, sem desculpas nem malícia, de roubar o esclarecimento para outros, roubar a si mesmo com uma música triste, um certo otimismo trágico, para roubar com uma intelectualidade de massa; se fosse para fazer isso, não seria colocar a criminalidade e a negligência uma contra a outra? Isso não colocaria a profissionalização, não colocaria a universidade, contra a honra? E o que então poderia ser dito sobre a criminalidade?

Talvez então seja preciso dizer que o vendedor de crack, o terrorista e o preso político compartilham um compromisso para com a guerra e que a sociedade responde em espécie com guerras ao crime, ao terror, às drogas, ao comunismo. Mas “esta guerra contra o compromisso para com a guerra” marcha como uma guerra contra o antissocial, quer dizer, aqueles que vivem “sem uma preocupação pela sociabilidade." Mas isso não pode assim. Afinal de contas, é a própria profissionalização que se dedica aos antissociais, a própria universidade reproduz o conhecimento de como negligenciar a sociabilidade, com a sua preocupação com aquilo que chama de antissociabilidade. Não, esta guerra contra o compromomisso para com a guerra reage ao compromisso para com a guerra como a ameaça que é – não mera negligência ou destruição descuidada, mas um compromisso contra a ideia da sociedade em si, ou seja, contra o que Foucault chamou de conquista; a guerra não falada que fundou e que, com força de lei, refunda a sociedade. Não antissocial, mas contra o social, este é o compromisso para com a guerra e é isso que perturba e, ao mesmo tempo, forma os undercommons contra a universidade.

Não é este o caminho para se entender o encarceramento nos Estados Unidos hoje? E, ao entendê-lo, não podemos dizer que é precisamente o medo de que o criminoso venha a desafiar a negligência que leva à necessidade, no contexto do estado americano e do seu círculo Universitas particularmente violento, de se concentrar sempre na negação da conquista?

A universidade é o local de reprodução social da negação da conquista

Aqui a pessoa se vê cara a cara com as raízes do compromisso crítico e profissional para com a negligência, as profundezas do impulso de negar o pensamento do exterior interno entre os intelectuais críticos e a necessidade de profissionais que questionem sem questionar. Independente do que façam, os intelectuais críticos que encontraram espaço na universidade estão sempre já executando a negação da nova sociedade quando eles negam os undercommons, quando eles encontram aquele espaço na superfície da universidade e quando eles juntam-se à negação da conquista, aprimorando aquele espaço. Antes de eles criticarem a estética e a Estética, o estado e o Estado, a história e a História, eles já tinham praticado a operação de negar o que torna essas categorias possíveis no subtrabalho do seu ser social enquanto acadêmicos críticos.

O slogan na Esquerda, então, “universidades, não prisões," marca uma escolha que pode não ser possível. Em outras palavras, talvez mais universidades promovam mais prisões. Talvez seja finalmente necessário ver que a universidade produz encarceramento como o produto da sua negligência. Talvez haja outra relação entre a Universidade e a Prisão – além da mera oposição ou semelhança familiar – que os undercommons reservam como o objeto e a moradia de outro abolicionismo. O que poderia aparecer como a profissionalização da universidade americana, nosso ponto de partida, agora poderia ser mais bem entendido como uma certa intensificação de método na Universitas, um fechamento do círculo. A profissionalização não pode dominar a universidade americana – é a abordagem crítica da universidade, a Universitas. E, realmente, parece agora que esse estado, com sua hegemonia violenta peculiar, deve negar o que Foucault chamou, nas suas conferências de 1975-76, de guerra das raças.

A guerra contra o compromisso para com a guerra invoca a memória da conquista. Os novos estudos americanos deveriam fazer isso também, se for para ser não somente a história do mesmo país, mas um movimento contra a possibilidade de um país, ou de qualquer outro; não somente propriedade distribuída justamente na fronteira, mas propriedades desconhecidas. E há outros espaços situados entre a Universitas e os undercommons, espaços que são caracterizados precisamente por não ter espaço. Assim, o foco recaiu sobre estudos sobre o negro por todos, desde William Bennett até Henry Louis Gates Jr., e a proliferação de centros sem afiliação com a memória da conquista, com seus guardiões vivos, com a proteção da sua honra, com as noites de trabalho, nos undercommons.

A universidade, então, não é o oposto de prisão, já que ambas estão envolvidas a seu modo na redução e no comando do indivíduo social. E, realmente, dadas as circunstâncias, temos que concluir que mais universidades e menos prisões significariam que a memória da guerra estava sendo perdida e, vivendo sem ser conquistado, o trabalho conquistado é abandonado ao seu próprio destino. Ao contrário, os undercommons pensam na prisão como um segredo sobre a conquista, mas um segredo, como diz Sara Ahmed, cujo segredo crescente é o seu poder, sua habilidade de manter distância entre ele e sua revelação, um segredo que clama pelo profético, um segredo guardado em comum, organizado como um segredo, nomeado como uma organização profética.

Os undercommons da universidade SÃO um não-lugar de abolição

Ruth Wilson Gilmore: “O racismo é a produção e exploração, sancionada pelo estado e/ou extralegal, de vulnerabilidades diferenciadas por grupos para a morte (civil, social e corporal) prematura." Qual a diferença entre isso e a escravidão? Qual é, por assim dizer, o objeto da abolição? Não tanto a abolição das prisões, mas a abolição de uma sociedade que poderia ter prisões, que poderia ter escravidão, que poderia ter salários e, portanto, não a abolição como a eliminação de qualquer coisa, mas a abolição como a fundação de uma nova sociedade. O objeto da abolição teria então uma semelhança com o comunismo, que seria, para retornar a Spivak, misterioso. O misterioso que perturba a crítica que o perpassa, o profissional que segue sem ele, o misterioso que se pode perceber na profecia, o momento estranhamente conhecido, o conteúdo que agrega, de uma cadência, e o misterioso que se pode sentir na cooperação, o segredo que uma vez se chamou solidariedade. O sentimento misterioso que fica em nós é o de que há alguma coisa a mais no undercommons. É a organização profética que trabalha para a abolição vermelha e negra!


Stefano Harney é Professor de Educação de Gerenciamiento Estratégico na Singapore Management University. É o autor de State Work: Public Administration and Mass Intellectuality (2002) e The Ends of Management (próximamente). Fred Moten é Professor na University of California, Riverside. É o autor de In the Break: The Aesthetics of the Black Radical Tradition (2003) e de B Jenkins (2010). Osmundo Pinho é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia


Obras citadas no prefácio

Garvey, Marcus. 2004. Selected Writings and Speeches of Marcus Garvey. Edição de Blaisdell, Bob. New York. Dover Publications.

Hartman, Saidiya. 1997. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. New York/Oxford. Oxford University Press.

Jesus, Carolina Maria de. 1960. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. São Paulo. Livraria F. Alves.

Madame Satã. Grandes Entrevistas Históricas. http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/MadameSata.htm

Wilderson, III, Frank B. 2011. The Vengeance of Vertigo: Aphasia and Abjection in the Political Trials of Black Insurgents. InTensions Journal. Toronto. New York University.