Como apanhar o Jacana numa madrugada fria em Pinheiros e encarnar a redencao
Pablo Assumpção
ABSTRACT
How to catch the Jaçanã bus on a cold São Paulo night and embody redemption: empathy as political protest
This text is part of a larger research project on the semiotic mediations taking place between body and space. The central theme of the research is how the city, far from being a mere exteriorit.y, is an active force in systemic human cognition. The writing takes off from a traditional samba song by Sao Paulo's composer Adoniran Barbosa ("Trem das Onze") and assesses, through literary prose, how personal memory and imagination contaminate the perception of the city of Sao Paulo and its nordestinos immigrants. It addresses in the title the idea of bodily empathy, an important neural mechanism to subjective production, as itself a political protest
Este é um exercício de escrita performativa vinculado a uma pesquisa de mestrado em semiótica (PUC-SP) acerca da relação-comunicação entre o corpo e a cidade. As teorias que embasam a elaboração deste conto dizem respeito ao acoplamento estrutural entre corpo e ambiente na emergência da cognição humana, especialmente a teoria da Umwelt, de Jakob von Uexküll, o conceito de embodiment proposto pelo filósofo Mark Johnson, e a neurobiologia dos sentimentos de António Damásio. Estas teorias combinadas articulam a idéia de que a cidade é ativa na cognição e que a subjetividade se estrutura espacialmente acoplada ao corpo da cidade. Ao demais, o fluxo de informações elaborado pelo corpo em sua relação com a cidade sugere que memória, desejo e percepção estão enredados em mútuas contaminações. Assim, o conto a seguir parte do famoso samba “Trem das Onze”, do compositor paulista Adoniran Barbosa, que versa sobre a classe trabalhadora da cidade de São Paulo, para mapear a contaminação da cidade com a subjetividade quando o autor depara-se com imigrantes nordestinos nos espaços da rua, da memória e da imaginação.
Era madrugada e ele estava bêbado. Na mesa do bar de onde havia acabado de sair, ele e a amiga conversaram sobre como é encantador, no sentido alquímico dessa palavra, ler um conto de Calvino sobre os pequenos rituais domésticos de um casal apaixonado e emocionar-se, minar água dos olhos a partir da mímica interna que uma leitura permite. Os dois verbalizaram uma perfeita fenomenologia da emoção literária e engoliram cerveja ao som de uma mesa de samba. Mas agora estava sozinho, em pés pouco estáveis, na calçada da rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros.
Esperava um ônibus que o levasse até a rua da Consolação – adorava esse nome – perto de sua casa. A garoa da madrugada estava escassa de ônibus, mas repleta de gente. Quando já pensava em desistir, oscilando entre qual perna imprimir mais força para o sustento do corpo, parou o Jaçanã. Tomou esse, e como a brincar consigo mesmo, danou-se a cantar baixinho o Trem das Onze, de Adoniran Barbosa.
Como criança que brinca, terminava a letra e recomeçava. Sentia uma alegria política em vocalizar aquele texto em samba, tão emblemático, quase folclórico, da cidade de São Paulo, esta mesma que lhe corria pela vista através da janela. A cidade e sua classe trabalhadora foram-se construindo naquele seu canto murmurado: a letra e a voz. Repetiu mais de cinco vezes a poesia de Adoniran, até chegar seu ponto de saltar do ônibus. Desceu, sorrindo para a cidade. E esperou o Jaçanã partir e perder-se de vista na Consolação. Então tornou a cantar.
“Não posso ficar nem mais um minuto com você”. E cruzou a avenida, tomando um calçadão da avenida Paulista. “Sinto muito, amor. Mas não pode ser”. Grupos de pessoas circulavam pelo frio da noite. Ao pé de uma agência bancária, dois mendigos dormiam. “Moro em Jaçanã!” Imaginou, dispondo de um repertório imagético razoável de ruas e bairros paulistanos na memória, um Jaçanã entristecido, um lugar açoitado pela rotina e pelo movimento redundante de milhares de vidas mestiças.
Tomava consciência de que as imagens de “seu Jaçanã” eram tingidas por uma pátina escura, provocada pela memória da dor e pelos sonhos não realizados de uma classe trabalhadora de forte descendência nordestina. Imaginou muita gente circulando na poeira urbana, e entendeu que o combustível desse movimento era o poder organizado em balança comercial. “Se eu perder esse trem, que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã”. Dorme-se onde quando se perde o trem da onze?
Era tarde, mas nesse instante passou por ele um homem vestido com roupas de repartição, carregando uma pasta surrada e uma cara arreada de cansaço. É um nordestino, pensou. Ele sempre dizia aos amigos que se fosse criar um documentário sobre São Paulo seria um também sobre o Nordeste, sobre como seus encontros na rua com os retirantes, trabalhadores braçais ou desempregados em São Paulo, se estruturavam segundo uma ressonância motora da dor física e da contração cardíaca própria de quem sofre longe de casa. Ele próprio um nordestino branco e de uma classe social alta o suficiente para sobrevoar aquela contingência, sentia compaixão ao julgar de vã a busca por uma “vida melhor” que seus conterrâneos significavam no sonho do imigrante. Percebeu, no mesmo movimento, que sua compaixão era também arrogância.
Sobre toda a ambivalência de seus pensamentos, cantou: “e além disso, mulher, tem outras coisas: minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Sua voz, embora ainda se projetando pela calçada pública, subiu deliberadamente de volume e ameaçou embargar-se num soluço de tristeza. Foi preciso empenhar-se e quase gritar: “sou filho único, tenho minha casa pra morar”. Seu cérebro traçara uma conexão específica de mapas neurais: ele parou de caminhar e sentiu uma pressão subindo do coração e forçando a goela, o rosto e a nuca. “Meu Deus”.
A dois quarteirões de casa, parado na esquina da avenida Paulista com a rua Haddock Lobo, naquela madrugada ele chorou como uma criança, e soluçou publicamente pela cidade de São Paulo, lugar para onde vêm os nordestinos que acreditam na metáfora social do “trabalho” como destino e função do corpo. Engenhoso processo vital: essa torção da carne e vazamento de fluidos era São Paulo redimindo a si própria.