Por Uma Nova Invisibilidade
Denilson Lopes | Federal University of Rio de Janeiro
Resumo: Cómo desaparecer completamente
Eu defenderia uma ética da desaparição, uma estética da delicadeza como apresentada na ficção de Caio Fernando Abreu, para resumir, uma nova invisibilidade. Agora silêncio não signfica necessariamente morte. Defender uma nova invisibilidade não significa voltar ao “armário” mas continuar a proposta de Silviano Santiago por mais sutileza e menos confronto em nossas estratégias diante ao mesmo tempo de uma crescente visibilidade conservadora e uma necessidade de diälogo com outros sujeitos na esfera pública. A política do confronto foi ganha pela direita. E a política de identidade vem sido mais e mais usada pelos fundamentalistas religiosos e nacionalistas estreitos. Não é o caso de uma ressurreição nostálgica de perspectiva utópicas e libertárias, mas algo mais discreto para enfrentar a proliferação de imagens midiáticas banais de todas as ideologias incluindo os auto-proclamados discursos transgressores. Onde é esperado um confronto, uma luta, virar-se e mudar de posição.
É fundamental, ao pensar a relevância de uma identidade LGBTS, questionar até que ponto sua institucionalização é necessária ou desejável. Nomear é sempre um perigo, mas se não nos nomeamos, outros o farão. Dar um nome não significa simplesmente classificar, mas explorar, problematizar.
Falar em queers1 é ainda algo restrito a circuitos acadêmicos. Além do mais, a falta de tradução lingüística bem pode ser um indício da falta de tradução intelectual. Está sempre presente “o perigo constante na tradução de qualquer informação cultural advinda de registro lingüístico minoritário: a tendência a reduzir as distinções de identidade, assim apagando as distinções sutis que são o epicentro de seu sistema significante” (Larkosh, 2000: s.p.).
Há que se refletir sobre a opção do Festival Mix de sexualidades múltiplas e o termo GLS ou ainda a tônica do “homoerotismo”, termo clássico, colocado novamente em circulação entre nós por Jurandir Freire Costa, com eco nos estudos universitários, mas praticamente não utilizado entre os militantes. Os debochados e coloquiais “bicha”, “viado” ou a construção transnacional de uma homocultura ou do gay? A saída não está em apontar para um nome único, mas em estratégias diferenciadas em função de realidades culturais e regionais distintas.
Pessoalmente, acreditei que a melhor resposta se daria a partir de uma aliança com o multiculturalismo para evitar um fechamento intelectual, para compor espaços que nos dessem visibilidade e espessura. Não se tratava de uma adesão incondicional ao modelo culturalista norte-americano, mas a necessidade fundamental de ir além de toda guetização, de todo política isolacionista. Era e é necessário não perder de vista que toda identidade é relacional. O redimensionamento da homossexualidade implica repensar a heterossexualidade, bem como a transitividade sexual historicamente presente na cultura brasileira, muito antes do boom bissexual dos anos 70, que, se nunca impediu a violência homofóbica, não pode ser reduzida à alienação, ao enrustimento. Pensar a sexualidade e a afetividade implica discutir formas de adesão a projetos coletivos e temas que transitem para o conjunto da sociedade civil, como a tentativa de militantes de incluir mais decisivamente o preconceito contra homossexuais no espectro da luta por direitos humanos fundamentais, dentro de uma sociedade mais justa para todos, como vem sendo feito com mais sucesso em relação à Aids e a seus portadores.
De minha parte, que nunca tive um pendor militante, ter conhecido os grupos gays Arcor-Íris no Rio de Janeiro e Estruturação em Brasília, ter participado de algumas de suas reuniões, após ter voltado de período de estudos nos EUA e no Canadá, foi fundamental para deixar de ter uma relação silenciosa com a homossexualidade e ter coragem em lidar com minha própria experiência e ao fazê-lo me sentir mais parte do mundo. E como isto foi difícil! Ainda, por incrível que possa parecer, e não pernóstico, ao menos espero, havia sentimentos que eram mais fáceis de serem ditos em inglês do que em português.
Quando adolescente, no fim dos anos 70 e início dos anos 80 em Brasília, não tive grupos de gays, o que vejo entre amigos mais jovens, entre meus alunos agora, com tanta visibilidade. Mesmo amigos que eram gays no colégio ou na época de faculdade fui saber muito tempo depois sobre sua orientação. De toda forma, não foi nem na universidade que encontrei este tipo de acolhimento, de possibilidade de discussão. Curiosamente, mesmo nos anos 90, a quase totalidade dos grupos gays se concentravam fora da universidade, fora do universo escolar. Foi no Arco-íris e, sobretudo, no Estruturação quando voltei de vez para Brasília, me senti mais à vontade do que em bares e boates. Encontrei um espaço em que se podia falar e discutir sobre homossexualidade com naturalidade, um espaço em que me sentia fazer parte, ao reconhecer mesmo as minhas diferenças. A alegria, a vitalidade com que saía de muitas reuniões foi decisiva para mudar minhas relações com minha família e amigos, me tirar um pouco da imagem que ainda me assombra do adolescente melancólico, uma encarnação possível do gay deprimido de antes dos anos 60. Mas em muitos aspectos eu estava lá nos 50. Nos EUA, não se falava então que não havia gays, só tímidos? Exagero, certamente, mas não de todo descabido.
Muitos não sentem necessidade falar de sua sexualidade, mas me fez uma enorme diferença não só saber que eu gostava de homens, o que sabia desde criança. Compartilhar esta experiência, mesmo sem precisar dizer com todas as palavras, foi perturbador. Eu estava lá. Certamente não escreveria o que venho escrevendo, não teria começado a falar em sala de aula e em congressos, se não tivesse passado por esta experiência.
E desta experiência que se construiu a percepção de que minhas responsabilidades como intelectual, gay e brasileiro não podiam se restringir ao de um intelectual orgânico, vinculado a um grupo social, sem levar em consideração complexos processos de exclusão e inclusão social. Não se trata de buscar aceitação e integração numa sociedade injusta, em que o termo gay se restringirá a só mais um rótulo numa sociedade de segmentação de mercado. Não sei se é o caso de recuperar uma tônica libertária ou radical, o que pode parecer ingênuo ou simplesmente ineficiente, mas certamente me sinto incomodado ao ver como cada vez mais o termo gay parece mais um item banal na nossa classe média com complexo de Miami ou de New York, propalador de um consumismo desenfreado.
Na busca de referências intelectuais que pudessem lidar com estes impasses, o encontro com a obra de Silviano Santiago, especialmente a partir da leitura de seu romance Stella Manhattan, me fez mudar de rota. Talvez nenhum outro crítico de cultura, entre os mestres de nossa geração, tenha nos trazido tantas sugestões para a construção dos estudos gays no Brasil do que Silviano Santiago. Desde seu antológico ensaio de 1971, “O Entre-lugar do discurso latino-americano”, agora reeditado, diferente de uma perspectiva marxista, que vai insistir, anos 80 adentro, exclusivamente na exclusão por classe social, como Roberto Schwarz no seu “Nacional por Subtração”2, Silviano descortina o horizonte de uma sociedade em que outras diferenças foram excluídas, como as identidades índias e negras, estabelecendo um diálogo fecundo entre Brasil e América hispânica, que cada vez fica mais relevante, face aos desafios do Mercosul e da hispanização dos EUA.
Mais recentemente, quando discutia com estudantes e professores da Uerj, Silviano se apresentou substantivamente como “escritor, gay”, parafraseando Murilo Mendes, que se dizia “escritor, católico”. Quando da publicação de Keith Jarrett no Blue Note, coletânea de contos assumidamente gays, Heloísa Buarque de Hollanda nos lembra na orelha do livro que “não existem papéis sexuais muito definidos. São improvisos que têm como leitmotiv o ethos gay de uma permeável disponibilidade para o sexo”. Silviano ainda escreve, em consonância com sua obra ficcional, “O Homossexual Astucioso”, recusando a vitimização e o “exibicionismo público, protestante, exigido do homossexual pelos movimentos militantes norte-americanos” (2004: 202) e defendendo a busca de formas mais sutis de militância do que a política do outing (assumir publicamente a homossexualidade). Silviano se pergunta no final:
Se a subversão através do anonimato corajoso das subjetividades em jogo, processo mais lento da conscientização, não adiciona melhor ao futuro diálogo entre heterossexuais e homossexuais, do que o afrontamento aberto por parte de um grupo que se auto-marginaliza, processo dado pela cultura norte-americana como mais rápido e eficiente? (2000, 15/16).
Foi com esta questão em mente que procurarei resgatar a invisibilidade, o desaparecimento e a leveza como estratégias mais sutis e menos confrontacionais, num contexto pós-identitário e transcultural, tendo como referência as ficções de Silviano Santiago e de Caio Fernando Abreu como uma alternativa aos discursos sobre a visibilidade, hegemônicos entre os grupos militantes e nas ciências sociais.
Nossa busca começa por Stella Manhattan, romance de Silviano Santiago (1985), que se passa em 1969, enquanto a ditadura militar tornava-se mais e mais selvagem no Brasil, entre um grupo de brasileiros em Nova Iorque. Uma ilha brasileira na ilha de Manhattan. “É à, na margem colonial que a cultura do Ocidente revela sua "diferença", seu texto-limite assim como sua prática de autoridade” (Bhabha apud Hollanda: 1991, 177). Tais margens não se restringem mais a uma divisão Norte-Sul, centro-periferia, elas podem estar no fim do bairro, nos limites do corpo. Nesse espaço, onde o olhar impera, os personagens são também verdadeiras ilhas em movimento, talvez fosse melhor dizer, fluxos em constante (des)encontro.
Eles não são representações de classe ou grupos sociais e, sim, imagens que encenam a crise do individualismo, caracterizada por uma progressiva perda, por parte do sujeito, de uma identidade claramente definida – crise de todo o século XX, que resulta em posturas que vão desde um narcisismo exacerbado, como observado por Cristopher Lasch em O Mínimo Eu (1987) até o predomínio de associações efêmeras, as novas tribos cartografadas por Michel Maffesoli em O Tempo das Tribos3(1987).
Essa crise do sujeito se delineia num quadro, onde sensibilidades transclassistas e transnacionais se confrontam. Sujeito onde mesmo a própria sexualidade se põe à deriva. “Perda das mitologias viris, mas também dos emblemas femininos - em benefício de uma miragem narcísica transexual comum aos dois (sexos) e que só toma falsamente um ar de homossexualidade” (Baudrillard, 1987: 67).
Estas personagens-dobradiças se constituem em verdadeiras metáforas da realidade midiática, cotidiana, onde cada pessoa quer brilhar ainda que por um breve momento, como uma star. “Personagens sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo num texto espelhado onde se cruzam fragmentárias, velozes, outras imagens, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente pela metade” (Süssekind, 1993, 240). Nova Iorque se constitui em labirinto multicultural para personagens não mais individualizados mas fantasmas periclitantes.
O jogo de máscaras atinge seu cume de complexidade no protagonista. Três máscaras: Stella Manhattan, o funcionário do consulado brasileiro em Nova Iorque. Eduardo Costa e Silva e a empregada Bastiana. Não se trata de heterônimos ou duplos resultantes de uma fratura interior do personagem mas máscaras móveis, em diálogo, representadas pela fala, mais do que por uma caracterização psicológica. Sexos diferentes, comportamentos diferentes num só, fluxos em curto-circuito.
O drama do protagonista se explicita à medida que seu sentimental apego se contrapõe à lógica dura de Marcelo (p. 184-185), este representa diferentes papéis sem que um interfira no outro. Já, Eduardo é um sentimental numa época onde os sentimentos são racionalizados, mortos com uma velocidade estonteante. O confronto entre memória e olhar, central para a obra de Silviano Santiago e para repensar as possibilidades da narrativa contemporânea, é encenado uma vez mais: o personagem que lembra/o mundo que o esquece. Stella é um personagem entre a melancolia e um jogo de máscaras. A consciência se torna olhar em crise frente a um mundo simulacral.
O drama do efêmero se completa com o da experiência sexual, na voz de Marcelo: “a principal característica da bicha hoje (entendamos 1969) é a de uma constante busca de estilo próprio” (p. 212). A falta de identidade leva à procura de uma subjetividade via espetacularização de si mesmo, sempre, no entanto, precária, posto que mutante. Acentua-se a fragilidade do protagonista pelo desafio do deslocamento entre as malhas da repressão cotidiana. Não devemos esquecer que ele foi “exilado” em Nova Iorque pela família e dos ecos vindos da ditadura militar no Brasil. Stella/Eduardo memoriosa, sentimental, confirma sua diferença frente à maioria silenciosa e à minoria inserida numa prática política de esquerda tradicional. Jogado no cotidiano, cada dia é cada dia.
Stella Manhattan representa o predomínio da fantasia, da ficcionalização do real em contraste com escleroses políticas e sexuais, que assumem posições rígidas, imobilizadoras. Stella está livre da prisão de outros olhares, mas sofre num mundo de fugacidades. O momento de seu corpo é anti-histórico, o agora concreto. O imagético contra o discursivo.
No decorrer da narrativa, Eduardo desaparece gradualmente. Corpo de neon. Os vínculos com outros personagens vão se rompendo. A perda completa das referências vêm simbolicamente com o telefonema do Cel. Vianna, adido militar no consulado brasileiro, mais conhecido como Viúva Negra, que afirma Sérgio não ser pai de Eduardo. Aí se dá a ruptura definitiva da comunicação entre Eduardo e o mundo. No desenraizamento, na última perda do vínculo com a família, a leveza da solidão mais plena.
Eduardo não tem mais. Eduardo nunca teve. Pensou que tivesse, o bobo. Pensou errado. Ninguém tem Eduardo. Ninguém teve Eduardo algum dia. Sente-se tão solto, tão solto que todo o ambiente concreto e pesado ao seu redor parece reduzido a puro ar. Uma pedra no ar. Um avião. Um meteorito. Um acrobata liberado da gravidade. Nada o puxa mais para a terra. Um corpo que não atrai e que não é atraído. Solto. [...]. O doce prazer de deixar o nada existir. A pluma ao vento não quer saber dos quatro pontos cardeais, e se quisesse, de nada adiantaria. (p.231).
O fim de Eduardo é o vazio, a rarefação. No entanto, o mistério de Stella não é o de seu simples desaparecimento, em suas várias versões, mas de como o visível se torna opaco, uma máscara na frente do nada. O desaparecimento de Stella revela a dificuldade da encenação social e do simulacro na sociedade de massas, onde a intimidade se vê invadida e o espaço público desvalorizado.
As possibilidades do jogo que vivificam a subjetividade pelo uso de máscaras reside na compreensão da natureza imagética da sociedade contemporânea. A máscara não é disfarce de um vazio existencial mas uma tática de coexistir onde o primado é o da velocidade. Há um confronto permanente entre o desejo de pertencimento e a deriva, entre narcisismo e tribalismo. Seu centramento na vida pessoal é difícil de ser mantido frente às mudanças do mundo exterior. Stella Manhattan é uma Mme. Bovary contemporânea. Em Nova Iorque, deseja a praia, o sol do Rio de Janeiro, e Ricky, em quem ela vê um James Dean reencarnado, a possibilidade de uma grande paixão e não um mero michê. Stella Manhattan é um romance de ilusões perdidas, de uma formação (Bildung) frustrada, ou talvez de uma impossibilidade contemporânea em articular satisfatoriamente o efêmero e o durável nas relações intersubjetivas. Stella, no fim, pode dizer "agora sou uma estrela". Ainda que ela tivesse morrido numa prisão norte-americana, violentada pelos presos (uma das versões do fim). Stella, de fato, não morre, ela desaparece nas palavras dos outros personagens. Seu corpo se dispersa. “Viado não morre, vira purpurina” (Laura de Vison).
Seu desaparecimento pode nos oferecer senão um caminho, pelo menos uma pista para reavaliar a invisibilidade. Se a invisibilidade comumente tem um sentido negativo num primeiro momento de uma política de identidades, talvez agora ela possa significar algo diferente. Ser invisível numa sociedade consumista pode ser uma maneira de fazer uma diferença pela pausa e sutileza. Numa sociedade onde tudo, todos devem ser visíveis a qualquer custo, incluindo mais e mais diversos grupos minoritários; mesmo a transgressão e a diferença são apenas estratégias de marketing. Por certo, invisibilidade não significa se esconder, fugir da realidade, mas simplesmente uma forma de enfrentar o poder corrosivo do simulacro, o excesso de imagens e signos, cada vez mais desprovidos de sentido.
A desaparição em Stella Manhattan pode ser melhor compreendida não tanto por razões políticas relacionadas aos regimes autoritários latino-americanos. É algo mais comum. As pessoas desaparecem todo dia, se perdem, não voltam pra casa. Basta ler os jornais ou as estórias de Paul Auster, repletas de personagens anônimos, sempre a ponto de desaparecerem.
A desaparição seria, então, uma outra maneira de viver, de se reinventar e de pertencer. A desaparição está sempre em constante tensão com a visibilidade, nos seus vários sentidos, seja político, cultural, comercial ou existencial. Como então desaparecer? Não é só uma questão de saber como lidar com a imagem pública como no caso de pop stars e políticos. É algo mais amplo. A invisibilidade tem menos a ver com o fascínio romântico por outsiders do que por apontar para uma subjetividade formada pelos fluxos do mundo, sem contudo aderir às superteorizações dos sujeitos nômades e pós-humanos. É só uma questão de deixar o mundo exterior ser o interior, a superficialidade ser a profundidade. Desaparecer para reaparecer. Aparecer para desaparecer. Uma brincadeira de pique e esconde.
Esta busca iniciada com Stella Manhattan é uma busca também por silêncio. Agora, o silêncio não significa mais morte. Clamar por uma nova invisibilidade não significa auto-repressão, voltar a um momento anterior a uma política de identidades necessária e eficiente na conquista de direitos, mas pensar para além, para o futuro. Trata-se de buscar menos confronto e mais sutileza diante do crescente uso conservador das políticas de representação por movimentos religiosos e étnicos fundamentalistas, uma estratégia que privilegie e amplie o necessário diálogo com outros sujeitos na esfera pública. Onde é esperado um confronto, uma luta, mudar de posição. Onde é esperado o grito, baixar a voz. “Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” (Nietzsche, 2002: 188). E este sim é um ato de entrega, de desejo de pertencimento, mas de pertencimento a quê?
Do fim dos anos 60, pulamos a ressaca de Morangos Mofados, e entramos nos anos 80 pelas mãos de Caio Fernando Abreu. A invisibilidade seria, então, um sinal de modéstia, como o protagonista de Onde Andará Dulce Veiga? (1990) descobre. No início do romance, ele vive sua invisibilidade social como mediocridade e fracasso. Quando ele consegue um emprego num jornal de quinta categoria, sua primeira grande matéria foi a de procurar por Dulce Veiga, cantora que desaparecera muito tempo atrás, nos anos 70 talvez. Ela some quando iria se apresentar no show que a consagraria como um dos grandes nomes da música popular brasileira. Ela não aparece e nunca mais se teve notícia dela. Subitamente Dulce Veiga que tinha sido entrevistada pelo jornalista ainda jovem numa de suas primeiras reportagens começa a aparecer em vários lugares na cidade de São Paulo. Estas aparições não só o fizeram compreender melhor a si mesmo, o passado, mas conquistar uma outra invisibilidade, um outro desaparecimento. Quando finalmente ele, que sempre fora apenas o fã, o que falava de outros, encontra Dulce Veiga numa pequena cidade no centro do Brasil; ele canta pela primeira vez, encontra sua voz apenas para que possa desaparecer melhor sem mágoas nem ressentimento. Desaparecer para o protagonista que até o fim do livro não tem um nome é encontrar-se diferentemente num outro tempo e num outro lugar.
Não se trata mais de fracasso nem de ser devorado pelo mundo da velocidade e da fugacidade. Coisas que pareciam tão importantes ficam sem sentido. Por ora, talvez seja razoável falar menos quando os vencedores não param de falar. É difícil competir com eles no mesmo campo. Não precisamos discutir mas mudar de jogo. Aprender novamente coisas básicas como ouvir e prestar atenção antes de falar. Não ter medo do nada e do vazio nem procurar tão desesperadamente por uma identidade.
Perdoem-me aqueles entre nós mais céticos ou cínicos, mas não posso evitar um tom religioso, como o próprio Caio Fernando Abreu não evitou em seus últimos trabalhos. Não tanto fruto tardio de um misticismo orientalizante e celebratório dos anos 60, há muito já transformado pela indústria do esoterismo. Um ato de fé. Não mais procurar. Calar. Olhar as palavras. “Quero ser livre para brincar nos campos do Senhor”, Caio Fernando Abreu declarou em uma de suas últimas entrevistas4. Sim, estou falando de salvação sem nenhum pudor. Uma salvação através das coisas deste mundo, como sente o protagonista também sem nome de Bem Longe de Marienbad (1996), ao ver duas enguias num aquário de “uma cidade do Norte” deserta. Na procura do enigmático K, o que parece se delinear é uma “arte de desaparecer. Mesmo assim, essa desaparição deixa vestígios, seja ela o lugar de aparição do Outro, do mundo, ou do objeto”. O outro, paradoxalmente, só aparece pelo seu desaparecimento (Baudrillard, 1997: 34). O protagonista se despede. “Preciso ficar sempre atento. Ainda não anoiteceu e alguns dizem que há castelos pelo caminho” (idem, 42).
Como seria possível, hoje então, não só uma estética (Virillio, 1980), mas uma ética encarnada no desaparecimento em tempos de máxima exposição quando o marginal, o revolucionário, o alternativo, o independente, o minoritário são glamourizados, vendidos e empacotados nas mais populares empresas de entretenimento? Há um frágil legado de leveza, uma posição, uma brecha, se permitirmos sermos reeducados para a delicadeza e para o desamparo. Leveza para lidar com o conflito, para evitar polarizações desnecessárias. Tudo poderia ser mais simples. Sofrimentos desnecessários, decorrentes do preconceito e da intolerância, poderiam ser evitados. A vida já nos traz tantos outros. Às vezes, nem é preciso muito. Apenas ouvir e ser ouvido. Uma conversa que pode nos abrir mundo que não sonhávamos existir mas que podem nos fazer diferentes. Aprender a sermos diferentes mesmo com o que não somos não estaria toda uma lição de verdadeira democracia, ao invés, de colocar cada um numa gaveta, numa estante, num canto em que podemos reconhecer um lugar, contanto que não saia do seu lugar, não cruze fronteiras, não nos toque.?
Esta não é uma posição extrema, mas por que as posições extremas, intempestivas seriam necessariamente as mais críticas, ricas ou eficientes na nossa época? Certamente, a contundência sempre ocupou um lugar importante de dissonância e insatisfação, como observamos em várias manifestações, das políticas de identidades aos movimentos anti-globalização. Mas por que não a sutileza e a delicadeza? Talvez seja um esforço geracional de quem se formou nos anos 80, se viu silenciado tanto pelo envelhecido discurso revolucionário e transgressor dos anos 60, quanto por muito que tem ganhado atenção neste início de milênio. Talvez não se trate de oposição, seja apenas uma posição discreta, uma forma de ser solidário na diferença, de busca da conversa entre estranhos, da comunidade de estrangeiros. Nossa busca ainda não terminou. Não se trata de negar as identidades, nem de considerá-las superadas. São muitos os caminhos. Esta foi apenas uma estória. Há muitas para serem contadas.É preciso estar atento a esta diversidade para gerar encontros inusitados, movimentos e espaços sociais mais plurais.
Até onde pode levar a leveza? Há uma salvação pelas fragilidades e precariedades, não por verdades acabadas, sistemas fechados, pesados. Por mais que o mundo nos pese, ainda resta uma brecha, nem que seja para rirmos de nós mesmos, de onde estamos, até onde caímos. E neste riso, num gesto tolo, num ato gratuito, voa algo que não se pode prender: uma “modesta alegria” (Abreu, 1988: 157) ou “a irrepremível leveza e alegria de ser comunista” (Hardt e Negri, 2004: 437).
O vento nas árvores visto pela vidraça não tem barulho. Os galhos, as folhas suaves se movem. Uma onda verde cruza o ar. Não me pertencem. Estou do outro lado, em outra margem.
Denilson Lopes é Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do CNPq, e autor dos livros A Estética da Delicadeza, Experiência e Paisagem (Brasilia, EdUnB, a ser publicado em 2007), O Homem que amava rapazes: e Outros Ensaios (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002), Nós, os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (Rio de Janeiro, 7Letras, 1999), co-editor do Imagem e Diversidade Sexual (São Paulo, Nojosa, 2004) e editor do O Cinema dos Anos 90 (Chapecó, Argos, 2005).
Notas
1 Para uma outra posição (ver Lugarinho, 2001).
2 Para uma leitura comparativa da crítica de Roberto Schwarz e Silviano Santiago, ver Eneida Leal Cunha (1997).
3 Para o desenvolvimento desta questão, ver meu ensaio “Terceiro Manifesto Camp” em O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (2002).
4 A última frase é de Caio Fernando Abreu em entrevista a Marcelo Secron Bessa.
Obras Citadas
Abreu, Caio Fernando.1988. Os Dragões não Conhecem o Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras.
_______. 1996. Estranhos Estrangeiros. São Paulo: Companhia das Letras.
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