Dossier: Personificação Racial / Impostura Racial

Personificação denomina um ato de ocupação – um ato através do qual alguém toma posse, literal ou figurativamente, do espaço de um outro. Se a personificação está no centro da arte teatral, a personificação racial organiza um terreno complexo onde lutas sobre poder, nação, trabalho e identidade se desenrolam. Incluindo práticas como “cara negra” (blackface), “passar como” (passing) e ventriloquismo, a personificação racial envolve sempre o desenho, o cruzamento e a travessia de linhas de diferença racial. Embora possa confundir ou contestar essa linha de diferença, o mais comum é que a personificação racial sirva para marcar e policiar as fronteiras que dividem a vida social no nexo da raça, forçosamente definindo quem pode e quem não pode ocupar determinados papeis raciais. Nesse dossiê especial, portanto, exploramos o modo como práticas de personificação racial revelam as diferentes linguagens, contextos e histórias por meio dos quais “raça” é vivenciada nas Américas.

Em sua elaboração sobre a “Brancura”, a artista e pesquisadora Coco Fusco sinaliza as “dificuldades que sentimos em distinguir racialização como um processo visual e racismo como um dilemma ético e politico”. Como prática de encenar outras raças, a blackface coloca tal dificuldade a prova extrema: em muitas partes do continente, blackface foi e continua sendo uma forma de produzir a raça e o racismo de modo tão intrincado que as duas produções chegam a ser indistintas. Fusco nos relembra que uma das idéias que definem “brancura” é sua “capacidade de camuflar-se como um outro racial”. Como o teatro bufo cubano do século dezenove descrito por Inés María Martiatu, o ato de “atuar” como escravo ou negro na Cuba colonial assegurava hierarquias raciais entre brancos e negros, além de encenar o status em fluxo dos criollos brancos na véspera da Guerra Anticolonial. Em outras palavras, performar negritude era um modo de reafirmar uma identidade cubana branca sobre e acima do colonizador espanhol. Ericka Beckman analiza um gesto social similar no Chile da Guerra do Pacífico, em meados do século dezenove (1879-83), e chama atenção para o que ela nomeia “personificação imperial”: “a apropriação da língua e da política da razão imperial por parte da nação periférica”. Ao invés de rejeitar a metrópole colonizadora salientando suas diferenças raciais, como aconteceu em Cuba e em muitos outros países Latino-Americanos, a elite chilena lançou-se como sua substituta. Sua performance de brancura imperial projetou uma geografia racial onde peruanos e bolivianos foram relegados a castas raciais impuras, enquanto o Chile virou o avatar de uma nova civilização branca.

É possível uma performance inter-racial que não seja conectada a um projeto de supremacia branca? Heidi Feldman apresenta o fascinante caso de ativistas brancos que advogaram por um renascimento afro-peruano e que usaram da performance de blackface como forma de validar a “autenticidade” de sua participação no movimento. “Por que usar a blackface, se o objetivo do renascimento afro-peruano era revalorizar a cultura negra?”, pergunta Feldman. Sua reflexão ilustra precisamente essa tensa fronteira entre representação de raça e produção de normas racistas. Num país onde a negritude é diariamente desmentida e feita invisível, talvez o momento em que um músico branco como Juan Criado veste uma blackface ele sublinha o modo como a música efetivamente pertence a este negro, negado pelo seu país. Ou, talvez, o uso da blackface revela uma falha crítica no movimento de reviver a cultura afro-peruana em si – falha em levar em consideração com maior profundidade as políticas de representação racial no próprio ato de visibilizar a negritude. Isar Godreau, por sua vez, examina a alarmante facilidade com que comportamentos sociais do cotidiano deslocam-se em performances de tipificação racial em Porto Rico. Exatamente por não estarem marcados com uma maquiagem “negra”, estas performances raciais mascaram-se como comportamento “natural”, disparando uma tautologia onde a performance evidencia o estereótipo e o estereótipo continua a servir de modelo para a performance. Godreau comenta que as tipologias raciais são tão “profundamente fincadas em nosso conceito normatizado de negritude que elas quase assumem vida própria”.

Particularmente notáveis são as conexões entre personificação racial e formações de gênero e sexualidade relevadas nesse dossiê. A essência imaginada, pureza ou perigo acoplados a “raça”, é intimamente ligada as políticas de sexualidade e reprodução, com o discurso de gênero necessariamente atenuando o discurso de raça e vice-versa. Notando como “miscigenação” emergiu como termo mais favorável do que “amalgamação” para denotar a mistura de raças, Tavia Nyong’o mostra como miscigenação funcionou como “palavra chave crítica na organização da heterosexualidade”. Javier Guerrero, por sua vez, observa o incidente contemporâneo em que a opinião pública venezuelana escandalizou-se com a performance brasileira de um Simón Bolívar gay. A resposta do presidente Hugo Chávez foi organizar uma contra-narrativa racial para desautorizar a chacota com o “Libertador”. Eric Lott, em sua contribuição, demonstra como na década de 60 Frank Sinatra usou um discurso marcadamente negro (“blackvoice”) e um estilo marcadamente italiano (“dagoface”) na intenção de assegurar sua própria masculinidade (branca) exatamente no momento em que a idade avançada ameaçava sua potência.

Como uma coleção, os ensaios coletados aqui sugerem que a popularidade e a persistência de diferentes formas de personificação racial extendem-se pelo continente americano e que, em casos particulares, essas performances constituem um papel crucial no que estamos chamando de zonas de contato racial – zonas onde formações raciais, e não apenas “raças”, entram em conflito e fricção. Um dos exemplos mais evocativos desta colisão é a controvérsia ao redor do personagem de quadrinhos “negro” Memín Pinguín, que apareceu impresso num selo postal comemorativo em Julho de 2005 no México. O selo foi criticado por oficiais de estado norte-americanos e defendido por Vincent Fox, então presidente do México. Enquanto os EUA acusaram o México de racismo, intelectuais e oficiais mexicanos acusaram os EUA de impor suas próprias normas raciais aos vizinhos de baixo. Como os textos de Carlos Monsiváis, Bobby Vaughn e Ben Vinson atestam, cada governo usou o outro como contraste aonde consolidar suas próprias imagens e intenções políticas a respeito de raça. Através de Memín, cada governo procurou afirmar sua própria superioridade e sensibilidade racial. Raramente escutadas foram as vozes mexicanas como a da antropóloga María Elisa Velásquez Gutiérrez (cujo ensaio foi comissionado especialmente para este dossiê), e que oferece tanto uma crítica do racismo mexicano como das presunções de superioridade dos EUA.

Completamente ignorado nos debates foi o fato de que as imagens em questão eram impressas em selos postais criados pelo governo federal e expressamente dirigidos a circular dentro e fora do território nacional mexicano. Não só era possível, mas provável, que os selos aparecessem em cartas escritas por mexicanos e enviadas aos seus familiares nos EUA, e que estas cartas fossem manuseadas por funcionários dos correios, incluindo afro-americanos, provavelmente indignados ao deparar-se com imagens que viam como claramente racistas. Os selos também servem para lembrar que a despeito da fronteira fortemente militarizada, a linha que divide os EUA e o México está cada vez mais embaçada, e que dada a realidade demográfica e migratória atual, não devesse ser surpresa que as divergentes histórias raciais entre os dois países viessem a tona. Isto ficou evidente quando da última e controversa aparição de Memín Pinguín nas prateleiras de um Wal-Mart de Houston, Texas, em Julho de 2008. O que era um crescente sucesso de vendas entre os consumidores mexicanos, tornou-se ao contrário um motivo de ofensa entre os fregueses afro-americanos – especialmente porque o item em questão trazia o título “Memín Pinguín para presidente”, e poderia ser interpretado como referência ao candidato a presidente Barack Obama. Dessa vez o incidente não se ocorreu como debate político entre chefes de estado sobre uma série de selos postais, mas sim entre consumidores do Wal-Mart – dois grupos minoritários estranhando-se numa paisagem neoliberal onde o conflito racial foi disparado e negociado a partir de mercadorias de baixo custo. Nesse caso, o selo funciona como uma sinédoque da formação racial, nos desafiando a entender os modos de circulação da raça dentro e através de fronteiras, contextos e histórias.

Dossier

Essays

Review Essays

Book Reviews