91_lg_barreiros_00

Cortesia:CAM - Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, Portugal

Plegaría muda de Doris Salcedo

Inês Beleza Barreiros | New York University

Plegaría Muda de Doris Salcedo. Curadoria de Isabel Carlos. CAM–Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, Portugal. 12 de Novembro de 2011-22 de Janeiro de 2012.

Plegaría Muda (Oração Silenciosa), instalação da artista colombiana Doris Salcedo – exibida em Lisboa, Cidade do México, São Paulo, Londres, Roma, Malmo, São Francisco e Chicago – foi considerada, pelo curador mexicano Cuauhtémoc Medina na revista ArtForum, como uma das melhores exposições de 2011. A peça acorda os fantasmas da história recente da Colômbia ao promover a abertura do seu arquivo. Um dos pontos de partida da peça é o escândalo dos “falsos positivos”, que teve um forte impacto nos media colombianos e internacionais no final de 2008 e 2009. Entre 2003 e 2009, cerca de 1500 civis desfavorecidos foram recrutados pelo exército colombiano para o que lhes foi apresentado como uma oportunidade de trabalho; em vez disso, porém, foram deslocados para locais remotos, onde foram assassinados e enterrados em valas comuns sem qualquer tipo de identificação para que os seus corpos pudessem passar por guerrilheiros combatentes do regime. Estas execuções extra-judiciais devem-se à implementação pelo Presidente Uribe da sua política de “pacificação”, que consistia num sistema de recompensas e incentivos e que incluía a contagem de corpos como forma de medir os progressos da campanha contra as guerrilhas. O rebentar do escândalo levou à exoneração dos oficiais do exército envolvidos. Um sentimento de impunidade permaneceu, no entanto, para as famílias das vítimas, que, com razão, não sentem ter sido feita verdadeira justiça.

Vista geral da instalação Plegaría Muda (2008-2010) Cortesia: CAM-FCG

“Escultura-memória” (Huyssen, 2003), “modelo de dor” (Basualdo, 2000), “topografia moral” (Gilroy, 2007), “contra-arqueologia” (Weizman, 2007), “estética do corte” (Bal, 2007), “necrópole imaginada” (Medina, 2011) e “elogio da vulnerabilidade” (Carlos, 2011) são alguns dos epítetos que têm sido usados para descrever o corpo de trabalho de Salcedo. Tal como em obras anteriores, Plegaría Muda resultou de um processo de investigação e produção junto dos familiares das vítimas. Todavia, a obra não cita explicitamente o evento que está na sua origem. Como a artista refere na memória descritiva da obra, esta procura articular as diferentes experiências e imagens do conflito colombiano com o reconhecimento das formas de violência que caracterizam uma guerra civil.

É isto precisamente que se encontra materializado na peça exibida no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, na qual o visitante é confrontado com uma instalação labiríntica composta por cerca de 162 estruturas, cada uma delas constituída por duas mesas justapostas e cujos tampos se encontram separados por uma grossa camada de terra fresca vinda expressamente da Colômbia. Esta terra é, por sua vez, atravessada por um sistema de irrigação próprio, o qual sustém uma ténue vida vegetal que brota dispersamente através do tampo de cada mesa invertida. Em plano geral, o visitante é, assim, confrontado com o alinhamento quase perfeito de estruturas morfologicamente idênticas, o que faz com que a peça se assemelhe a um gigantesco arquivo. Ao aproximar-se da mesma, porém, esta impressão é perturbada pela irrupção espontânea do detalhe orgânico. O contraste dialéctico entre estas duas perspectivas confere substância à instalação—ao inverter a imagem plácida desse fantasmático arquivo-cemitério vivenciado num primeiro momento pelo visitante, a que se vem substituir a visão perturbante de mesas voltadas ao contrário, terra revolvida, e uma vida vegetal que irrompe inesperadamente pelas frestas dos tampos das mesas. 

Detalhe da instalação Plegaría Muda (2008-2010)
Cortesia: CAM-FCG

Ao revolver a terra e as mesas, ao desenterrar os mortos, e nesse gesto revolver os próprios visitantes, “instalando-os” como participantes de um luto silencioso em memória das vítimas das execuções extra-judiciais, Salcedo não só transforma a história da Colômbia e a consistência do seu arquivo, como também converte os visitantes nos próprios agentes (performers) dessa transformação, confrontando-os, in situ, com a essência dialéctica do acontecimento. Na verdade, a instalação transporta o espectador para uma atmosfera dialéctica, onde se configura muito do que Walter Benjamin designou pelo conceito de “imagem dialéctica”—uma imagem produzida pelo conflito entre duas experiências justapostas provenientes de diferentes tempos e transportando narrativas e significados contraditórios e irreconciliáveis. Esta tensão dialéctica, entre a imagem estável de um evento arquivado e a experiência instável da sua instalação, é essencial à experiência de Plegaría Muda, fazendo com que a obra transcenda o terreno da simples eficácia estética (como objeto de museu) e instale, na própria (des)instalação que promove no espectador, a possibilidade de um julgamento efetivo, antes que o arquivo e a história venham pacificar, rasurar e ocultar as chagas do escândalo dos “falsos positivos”.

A este respeito, Plegaría Muda ecoa a contraposição política e formal entre o conhecimento produzido pelo “arquivo” e o conhecimento produzido pelo “reportório”, desenvolvida por Diana Taylor (2003):  por um lado, a peça captura a natureza tendencialmente rígida do arquivo, alinhando e classificando uma série de factos históricos perenes. Por outro, a plasticidade do reportório, simbolicamente representada (mas não exaurida) pela irrupção e crescimento da vida orgânica, oferecendo a potencialidade de reabertura performativa do acontecimento, e impedindo o seu fechamento e submissão a qualquer passividade arquivística. Ao nível político mais imediato, Plegaría Muda não podia ser mais incisiva: a interminável retórica do poder politico, que desde o início impediu o exercício da justiça, é aqui contrariada pelo silêncio performativo do luto, de que o gesto de Salcedo nos faz testemunhas, intérpretes e, se possível, potenciais transmissores. Como espectadores (performers) de Plegaría Muda, todos nos tornamos colombianos.


Exposições em curso e futuras
MAXXI–Museo Nazionale delle Arti del XXI Secolo. Roma. 15 de Março—24 de Junho 

White Cube. Londres. 25 de Maio—30 de Junho de 2012

Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo. 15 de Dezembro—a definir

Museu de Arte Contemporânea de Chicago / Museu de Arte Moderna de São Francisco. Previstas para 2013


Inês Beleza Barreiros é doutoranda no Departamento de Media, Culture and Communication Studies da NYU. É mestre em História da Arte Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa e licenciada em História, variante História da Arte pela Universidade de Lisboa. Os seus interesses situam-se na intersecção dos campos da cultura visual e dos estudos da memória e a sua articulação no contexto do império português, em particular as suas sobrevivências contemporâneas e os conceitos de saudade, ruína e exílio. Presentemente, para além da escrita da sua tese, Sombras Imperiais: as Sobrevivências do Império Português, está também a desenvolver o projeto do seu filme, Atlântico Pardo. É autora de Sob o Olhar de Deuses sem Vergonha: Cultura Visual e Paisagens Contemporâneas (Lisboa: IHA-EAC/Colibri, 2009).


Referência
Bal, Mieke. 2007. “Earth Aches: the Aesthetics of the Cut.” Em Doris Salcedo: Shibboleth. Ed. Achim Borchardt-Hume et al., 41-63. London: Tate Modern Publishing.

Basualdo, Carlos et al.. 2000. Doris Salcedo. London: Phaidon.

Benjamin, Walter. 1999 [1927-1940]. The Arcades Project. Traduzidos Howard Eiland e Kevin McLaughlin. Cambridge: Harvard University Press.

Carlos, Isabel et al. 2011. Doris Salcedo Plegaría Muda. London: Prestel.

Gilroy, Paul. 2007. “Brokenness, Division and the Moral Topography of Post-Colonial Worlds.” In Doris Salcedo: Shibboleth. Ed. Achim Borchardt-Hume et al., 23-29. London: Tate Modern Publishing.

Huyssen, Andreas. 2003. Presents Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory. Stanford: Stanford University Press.

Medina, Cuauhtémoc. 2011. “Best of 2011.” Em ArtForum, Vol. 50, no. 4: 202-203.

Taylor, Diana. 2003. The Archive and the Repertoire: Performing Cultural Memory in the Americas. Durham: Duke University Press.

Wiezman, Eyal. 2007. “Seismic Archeology.” Em Doris Salcedo: Shibboleth. Ed. Achim Borchardt-Hume et al., 31-39. London: Tate Modern Publishing.

 

{akgallery}