Esta peça, criada durante o movimento Diretas Já, que pleiteou eleições diretas no Brasil, é uma parábola do momento político que o país estava enfrentando. Ela conta a estória de um casal de velhinhos que tinha vivido na mesma casa durante os últimos vinte anos e de como a casa foi-se deteriorando dia após dia. O casal encorpora a classe média conservadora que apoiou o golpe militar de 1964, mas que, duas décadas depois, perdeu os seus privilégios e foi às ruas para lutar por Diretas Já. Entrelaçada com estórias paralelas – um casal que está sendo despejado, uma cena de tortura e o julgamento de um policial – a audiência vê a casa literalmente cair aos pedaços diante deles. Na cena final, quando o candidato à presidência chega, uma mão gigante aparece para lhe entregar a faixa presidencial e o prédio desmorona com estilhaços, vazamentos e poeira.

quarta-feira, 15 setembro 2010 20:42

Fim de partida (1986)

Nesta encenação da obra Endgame, de Beckett, a audiência tem que cruzar um longo túnel coberto com placas de zinco para chegar à desoladora imagem dos quatro personagens, fisicamente limitados e presos entre paredes de zinco, consumidos por relacionamentos de angústia e ressentimento. Há um pacto silencioso e desesperado entre eles, em que Hamm é o déspota que dá as ordens que Clov obedece, mas é Clov quem determina se o jogo continua ou não, uma vez que ele poderia ir embora a qualquer momento e então os outros morreriam. Toda a estória revolve em torno do medo de que ele possa ir embora; mas ele não vai, porque não há para onde ir. Mesmo no final, quando ele deixa de atender aos pedidos do cego Hamm, Clov permanece ao seu lado, inerte e em silêncio, com uma mala na mão. Tudo termina como começou, e nada acontece.

quarta-feira, 15 setembro 2010 20:38

Ostal — Rito teatral (1987)

Em Ostal, a audiência de apenas vinte pessoas é conduzida através de um túnel escuro por um médico, um por um, ao quarto de um paciente, quase completamente ocupado por uma cama enorme. Quando entra o último membro da audiência, o médico tranca a porta. A performance ocorre nesse quarto fechado, fragmentos da vida de uma mulher atormentada pela doença mental. A sua esquizofrenia é retratada não como uma enfermidade clínica, uma doença, mas como uma inevitável consequência do processo de adaptação social a que todos nós estamos sujeitos desde a infância. Em busca da sua identidade, ela busca cumplicidade por parte da audiência, enquanto todo o tipo de eventos estranhos e violentos acontecem com ela e com o quarto, sem que nenhuma palavra seja dita.

quarta-feira, 15 setembro 2010 20:20

Deus ajuda os bão (1991)

Baseada no texto de Arnaldo Jabor, Deus ajuda os bão dá continuação às aventuras de Zé da Silva, o protagonista de A história do homem que lutou sem conhecer seu grande inimigo, que simboliza o povo brasileiro. Neste conto político, Zé da Silva, desempregado e vivendo na favela, encontra-se impedido de construir uma porta para proteger o seu barraco. Este problema dá início a uma jornada, na qual ele vai de porta em porta, escalando os degraus hierárquicos da sociedade brasileira — os especuladores, os intelectuais, o governo, o proprietários de terra — acabando por chegar nos E.U.A., em busca de uma solução para o seu problema. A viagem de Zé da Silva ilustra os mecanismos de poder em um país dependente como o Brasil, onde a questão da reforma agrária tem um papel crucial. Ele retorna à favela com a consciência de que, junto a todas as pessoas exploradas, ele precisa lutar pelos seus direitos. Deus ajuda os bão é uma obra concebida como uma farsa e é recheada de ironia, acentuando o drama econômico e político em que a maioria da população brasileira vive.

quarta-feira, 15 setembro 2010 20:16

A missão — Lembranças de uma revolução (2006)

A obra A missão: lembranças de uma revolução, de Heiner Müller, evoca a estória de uma revolta de escravos na Jamaica logo após a Revolução Francesa. Três homens, Debuisson (um proprietário de terras jamaicano), Galloudec (um camponês britânico) e Sasportas (um jovem negro idealista, que quer ver a nova República Haitiana Negra), são enviados para a Convenção Francesa para liderar uma revolta escravocrata na colônia inglesa. A missão é uma reflexão sobre como as ideias são exportadas do espaço hegemônico para a periferia e sobre como a memória, através da visão política do presente, nos alcança atualmente. A obra de Müller explora a dialética poética do fragmento, evitando relatos conclusivos e convidando a audiência a envolver-se ativamente. O fragmento torna-se uma fonte de produção de conteúdo, num ato político que evita clichês pré-fabricados e padrões produzidos pela mídia. O fragmento provoca uma colisão instantânea entre temporalidades heterogêneas, combinando uma visão crítica da história, para a desconstrução da linguagem discursiva cartesiana. A combinação do fragmento com a poética teatral do corpo opõe-se à linguagem do poder e do conceito, uma vez que o ato intelectual é secundário à experiência, a algo que não pode ser imediatamente determinado, e que precisamente por este motivo torna-se uma experiência duradoura.

Esta peça é baseada no romance de Christa Wolf, no qual ela relata a estória do declínio de Tróia a partir da perspectiva feminina de Kassandra. É uma peça sobre a guerra, mas também sobre as liberdades civis, sobre o direito à clareza contra os sistemas de poder, organizados em estruturas hierárquicas, e sobre as crueldades sofridas pelos excluídos e o próprio processo de exclusão, com as suas leis invisíveis. Por que alguém começa uma guerra? Ao apresentar à audiência máquinas mortíferas, Kassandra incita os espectadores a questionar os valores da guerra e do heroísmo que permeiam a nossa cultura. O que aconteceu com esses valores frente aos horrores do século XX? O que aconteceu com as nossas tradições artísticas e a sua capacidade de examinar a nossa civilização? No contexto atual, seria a vanguarda — um conceito artístico que descuidadamente toma emprestada uma metáfora da guerra — nada mais que um irresponsável salto para adiante? Utilizando elementos e materiais iconográficos da Segunda Guerra Mundial, da Alemanha Nazista e do bombardeio atômico de 1945, a performance recupera o significado de uma arte que não se acovarda diante das questões cruciais e dolorosas do nosso tempo, mas, ao contrário, as enfrenta e confronta, a fim de compreendê-las melhor. Concebida como um sincretismo heterogêneo de temporalidades, Kassandra baseia-se no antigo arquivo trágico das mulheres vitimizadas de Tróia, comprimindo aproximadamente três mil anos de cultura em gestos simultâneos e similares: estupro, pilhagem e o imperialismo belicoso masculino, representado por uma falocracia que permeia o comportamento e o discurso masculino ocidental.

quarta-feira, 15 setembro 2010 20:05

Independência ou morte! (1995)

Tomando emprestada da história a famosa frase usada por Dom Pedro I para declarar a independência do Brasil, “Indepêndencia ou morte!”, o Ói Nóis cria uma nova versão não-oficial da formação da sociedade brasileira. O propósito é desmistificar os chamados “herois” e pôr no seu devido lugar a verdadeira força de trabalho e cultura deste país. A invasão das terras dos americanos nativos e a expatriação e escravização dos povos africanos servem como estrutura narrativa, exemplificando a opressão e a pobreza em que a maioria dos brasileiros ainda vive. O tom bem-humorado e irônico com que os “herois” oficiais são tratados areja um pouco o modo embolorado em que a história deste país tem sido contada, enaltecendo os nomes de alguns e negligenciando o resto.

Esta peça de Augusto Boal mostra a trajetória de um personagem simbólico, Zé da Silva, em sua luta contra a fome. As suas aventuras começam depois que ele pede um aumento e acaba sendo despedido. Zé da Silva então tem que enfrentar preços que sobem mais rápido que o tempo que ele leva para chegar até a feira; um Anjo da Guarda que cobra royalties para o capital estrangeiro cada vez que Zé consome qualquer coisa, inclusive o café brasileiro, controlado por empresas multinacionais; a falta de leitos nos hospitais administrados pelo Sistema Nacional de Saúde; e as promessas vazias dos políticos durante o período eleitoral. A peça explora os efeitos cômicos da demagogia, através de um humor acessível, de caricaturas, de situações de farsa, de acrobacias e de batuques animados. A audiência é convidada a participar e os atores não se contentam em estar no centro da roda. Eles trabalham com provocações por parte da audiência, andam por entre os espectadores, conversam com eles e pedem conselhos, estabelecendo uma cumplicidade em torno das questões que estão sendo discutidas.

quarta-feira, 15 setembro 2010 19:52

Hamlet máquina (1999)

Em Hamletmachine, Heiner Müller encontra o local adequado para a revolucionária construção de um novo teatro. Os seus textos são formados por fragmentos, cenas despedaçadas e monólogos ridículos, estímulos para a invenção criativa de uma realidade representada, a única realidade capaz de transgressivamente traduzir a complexidade da existência contemporânea. Em uma das cenas finais na adaptação do Ói Nóis, a figura do defunto Stalin aparece nos monitores de TV, enquanto três atrizes nuas desfilam usando cabeças gigantes de Marx, Lenin e Mao. Os personagens e as cenas são pulverizadas e multifacetadas, possibilitando leituras distintas e contraditórias, que oferecem inúmeras interpretações políticas concretas e referências simbólicas.

Esta encenação da obra Fausto, de Goethe, recria um dos mitos esotéricos mais universais de todos os tempos, o de um homem que vende a sua alma para o diabo. Toda a estória de Fausto é encenada, mas não todo o texto nem todas as cenas. Ao invés disto, a audiência de 30 pessoas é conduzida através de uma sucessão de ambientes oníricos, em uma jornada rumo ao inconsciente do personagem. O Fausto do Ói Nóis levanta o questionamento de quem é, afinal, o homem faustiano do nosso tempo: é o cientista e o político, ou o que está de fora, aquele que contesta o sistema? Esta estória revela à audiência dois fatores essenciais para a emancipação humana: o desejo de conhecimento e o prazer principal, ambos cruciais para o poder de luta e para alimentar revoluções.

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